queijos-e-vinhos

 


Quando o ônibus parou no Graal eu não ia descer. Não queria. Descer pra quê? O motorista ─ mais o assistente do motorista, no caso ─ disse qualquer coisa sobre quarenta minutos e uma necessidade que eles tinham. Coisas que eles falam. Não prestei muita atenção. E no tempo em que ele repetia com pouca ênfase o que tinha dito, embaixo, pros passageiros do Leito, fui vendo o ônibus esvaziar. Tranquilo até. Na paz. Vi sem me mover. Não tem nada demais no jantar duma viagem interestadual. Eu tava sem fome, dois dramins. A viagem toda mastigando-por-mastigar uns salgados que eu tinha comprado na rodoviária.

Só que, quando eu percebi, não tinha mais ninguém no ônibus. Olhando ao redor, levantando do banco, só tinha eu. Me prontifiquei a descer, então. Sumisse alguma coisa era no meu rabo, como sempre é muito fácil ser.

Enrolei minha manta em volta da garrafa térmica que eu trouxe, encaixei essa trouxa no apoio da janela e deitei em cima disso o meu travesseiro de pescoço. Tentei memorizar. Comparar a imagem mental dessas coisas assim, como eu deixei, com elas do mesmo jeito, quando eu voltasse, ia me suavizar a consciência. Quem viaja muito tem desses truques. Não que seja comum que sumam os bagulhos de dentro dos ônibus. Comum é só o medo.

Nisso que eu desci, percebi sem reparar muito que a galera da viação tava esperando que eu descesse. Quase como se esperassem mesmo, como se eu adiasse jantas. Mais uma vez, é das coisas que acontecem. Trancaram atrás de mim. Reafirmaram um 'quarenta minutos' sem contexto ao que acenei que sim. Só ia usar o banheiro. Não tinha o que cronometrar. Quanto mais rápido melhor. A parada foi inconveniente demais, eu já tava na minha cidade de destino, era só terem chego na rodoviária primeiro. Mas não. De novo, tem dessas coisas.

O-negócio de entrar no Graal é que eles te dão aquela puta placa de trânsito na sua mão até se o sujeito só quiser soltar uma água, porque o banheiro ─ convenientemente ─ fica lá dentro. É o esquema deles.

Cê passa na roleta, uma catraca te vomita esse bagulhete que cê tem que pegar. Depois que cê fez o que tinha que fazer cê tem que entrar no restaurante, passar pelo caixa que pesa os pratos ─ o que é constrangedor, não tendo prato nenhum, só sorrisos ─, navegar a praça de alimentação, rodear a reta final das conveniências e, se cê tiver vazio, se nada tiver na sua mão, entregar essa merda direto numa roleta parecida com a primeira ─ o que é constrangedor, pelo menos pra mentes mais preocupadas.

Ou se não, se por algum impulso cê achou de bom-tom deitar cinquentão num self-service que cobra a carne à parte ou quinze conto numa esfirra ─ e não tem pra que mentir, uma esfirra que até chega a parecer que vale ─, ou se quando passando pela parte da lojinha eles te pegaram na-mente com alguma bugiganga: cê vai ter que enfrentar a fila do caixa. Enorme sempre que for o momento mais inconveniente pra ser enorme, adivinhando pressas.

Os funcionários que organizam a loja ou qualquer coisa dessas de varejo são os que passam os produtos também, na falta de outros. O que significa que, quando o Graal tá vazio de fila, tá também vazio de atendentes. Não em poucas viagens vi esse número chegar ao zero, no completo fechamento da saída. E esse morgar parece proposital, nem tem como não ser. Até que cê rode a roleta pra trás da sua bunda ainda tem a chance de que cê pegue um chiclete. Demorar é te fazer sucumbir à vontade rasgada de qualquer coisinha importada que eles botam bem no nível dos olhos, como quem não quer nada contigo, querendo.

Mijar foi fácil, baguncinha nenhuma, só a limpeza pecando um pouco, mas é de se esperar, não sendo culpa de ninguém. Imaginar como deve ser trabalhar no Graal dissuade toda forma de maldade enquanto comentário. É sempre um barato ─ mesmo essa sendo uma das únicas duas formas que existem pra secar as mãos ─ aquela aparelhagem toda que sopra quente. A saboneteira também de aproximação, assim como a torneira. O mictório também parecia que sim, mas eu não uso mictórios.

Aí saindo do banheiro veio a neurose de querer comprar alguma coisa, uma porcariazinha doce de qualquer oito pilas que seja, um palavras-cruzadas, uma obscenidade mal-escondida. Porque quando cê chega no nível da loja, dos licores, das balas, revistas, camelódromo, galeria de arte, ainda existe uma dimensão labiríntica na coisa toda que não escapa à percepção de ninguém que não nos seus dez anos. A ideia de que não querem que cê escape. Tudo te empurrando pra voltar casas e reexperienciar os artifícios deles perguntando pra um funcionário atoa no restaurante ─ porque só no restaurante é que eles ficam atoa ─ como é que faz pra sair dessa merda.

Isso tudo, também, não mais que uma coisa que cê tem como conceito fechado já nos quinze. Não é como se fosse o primeiro prédio do mundo. É o mesmo esquema que os Supermercados Dia usam, que é o meio-termo entre isso, de fato, e a falecida Lojas Americanas, que era mais jogada, que Deus a tenha.

O planejado de tudo no Graal te deixa desconfortável, o que não importa, já que limite de tempo faz parte do porquê cê tá ali. É pra ser o contrário de apassar os passos mesmo e ralear multidões. E pra pegar os furtos por funilamento. A segurança ainda é capaz de dar mole, fácil, por isso câmeras e detectores pra coisas maiores.

Passei pelos caixas perguntando se eu tinha que passar neles mesmo sem ter comprado nada. Como eu sabia o que iam dizer, disseram que não. Nessa eu voltei uns metros ─ dei essa vantagem pra loja ─ pra pegar uma cerveja. Paguei ela ali em dinheiro mesmo. Alimentei a saída com o cartão deles vazio e saí com de-brinde nos bolsos um Toblerone mini e um mints gringo de sabor canela, na casa dos trinta reais cada. De pagar só foi a cerveja. Na tranquilidade. O negócio era só comer dentro do ônibus.

E o ônibus cadê nessas horas? De cara não encontrei. Tinha esquecido a cor. Esquecido a viação. Nunca nem vi ou reparei no rosto de ninguém na viagem comigo, eu achava. Fumando um cigarro, na tranquilidade, ainda, terminando a latinha, fui lembrando aos poucos de alguns detalhes, confirmando que não tava ali. Imaginei abastecimento. Uma explicação provável.

A espera começou a apertar, no entanto. Andando entre as docas, comparando modelos, ônibus foram e vieram, muitos. Impossível que eu tivesse gasto mais de cinco minutos lá dentro e outros cinco fumando. Mas a cada par de ônibus atracando e saindo, a cada novo cigarro, a coisa se distendia. Será? Não lembrando muito bem quando paramos, o relógio já podia marcar bem meia hora, quem sabe a totalidade dos quarenta. Já comecei a pensar nas coisas lá dentro.

Não era nem a ansiedade de ser pego. Nem a vontade de comer o chocolate, já até tinha. Era qualquer coisa cármica me pegando nessa tiração de onda. Qualquer 'aí, bem feito'. Uma culpa de inutilidade.

Porque pequenos furtos são o tipo de coisa que só se justifica, isso só quando, na necessidade, nos extremados dos casos de caridade nos antigos quadros do Gugu, Deus o tenha. Furtar é mãe enfiando coisa no carrinho pra dar pra criança e Jean Valjean. O resto é roubo, assim deplorável, ou Queijos-e-Vinhos, até um pouco pior.

Queijos-e-Vinhos ─ o nome e esporte que adolescentes de classe média dão e se-dão-a, quando se divertem espoliando, outro nome, supermercados ─, diferentemente de furto e roubo, é dum repulsivo e imoral mais progressista. É o fazer porque pode, o desleixo destilado dos pais ausentados, o antissocial por natureza. Porque não poucas vezes o jovem só consegue passar fazendo isso porque é balizado pela inocência aparente. E qualquer um com qualquer malícia no coração sabe bem o que isso significa.

A ideia de que cê não precisa roubar, porque se cê quisesse, comprava, leva muita gente longe nesse brejo. Queijos-e-vinhos, quando não inocente, quando não passável por isso, é um tipo de tirada autodestrutiva. É cartear com um destino maroto em azar. Porque cê tá jogando com o risco, tá pagando as coisas que cê pega no risco de validar um pressuposto e um esteriótipo.

Sim, tudo bem conceitual, meio sociopolítico. Assim como maioria dos crimes. O simples é: se eles acham que sim, e te acompanham como se assim sendo, faltando revistar, ser é quase uma revolta. Mesmo não compensando, cê colocou o intragável na boca a vida e mandou ela degustar. Porque o pressuposto do Queijos-e-Vinhos original são os papais, rápidos nos carros-de-salvar rascando os pitchucos de consequências. Mesmo que nunca chegue a isso, só essa expectativa é diferença suficiente. Quando furto, ou, pior, quando roubo, o esperado é que não se chegue inteiro até que os parentes saibam.

E o ônibus demorava. Não como risco a mais, eu tava tranquilo. Quem confere as fitas, entre outras funções? Fica pra empresa o lucro, apesar do desfalque, de não contratar ninguém pra isso. Tá contado na quebra-de-caixa.

O ônibus demorava, mas não como perigo, mas como coisa cármica. Um momento pro meu pensamento me pesar. Nos efeitos que essa pagação causa, quase sempre. Enquanto esperava, esperando alguém dar por falta das coisas ─ nunca dariam, mas é a neurose ─ e eu ser apresentado, por meio uma pessoa parecida comigo contra outra pessoa parecida comigo ─ porque vale a tranferência ─, como consequência visual e moral dos meus atos. Talvez arrastem alguém, e eu, por isso, estragando a minha semana me sentindo culpado.

Na linha desse pensamento uma família foi saindo pela porta do Graal. Num estalo, então, eu reconheci a senhora retinta, a mãe, que tava sentada com eles nos bancos da frente do semi-leito e na qual eu só reparei porque eu e ela e toda a família nos sorrimos quando nos trombamos. Do jeito que acontece quando somos poucos. A pontada de culpa veio, o risco agora tinha rostos, mas ia ficar pra depois. 

Chegando perto eu avisei do sumiço do nosso ônibus. Aí, com uma calma que não pecou nunca, ela me lembrou ─ na verdade informando, sem saber ─ que avisaram: iam trocar o pneu que tinha furado.

Esperei longe deles, fiz questão de conversar com mais pessoas pra desbaratinar. Fomos embora. As coisas tavam como eu deixei e me fiz valer muito, obrigado, das mentinhas pelo resto do trajeto até o Centro. Valiam mesmo o preço. Talvez na próxima eu pagasse.

Dois dias depois, assistindo notícias locais, eu ainda nessa cidade, vi que espancaram um cara. Não vou dizer que lá, também não vou dizer que não. Usuário de drogas, dizia o noticiário, o provável é que só morador de rua. A diferença sendo meio negligenciável mesmo pra quem não tem nada com isso, mas a intenção era límpida.

Diziam que 'tentou roubar' a conveniência. Teriam que dizer furto ─ regras não escritas ─, porque era comida, porque claramente desnutrido nos tendões do pescoço. Aí que tá, por isso disseram usuário: pra, no supérfluo das drogas, falarem roubo.

Mesmo assim, no supérfluo, não Queijos-e-Vinhos. A gente sabe que não. Foi roubo mesmo, a definição é essa. Porque, pra além de não ser branco ─ e existem excessões à regra; claro, eu incluso ─, ele foi pego. E Queijos-e-Vinhos é só se cê consegue sair, nisso esbanjando ter conseguido.


2023 abril

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