a perna quebrada¹ (& commentāriī²)

A tristeza estagnada, silenciosa, impotente e letárgica³ que sinto agora me faz reviver uma lembrança antiga. Nitidamente, consigo evocá-la⁴ entre as sensações que tenho nesse instante e as emoções marcadas na minha memória por esse acontecimento.

Foi a⁵ aproximadamente dez anos, em uma das grandes compras mensais de mantimentos e supérfluos, marcadas e vividas como rituais sagrados pelas crianças do subúrbio⁶ como eu. Começava quando, por acordo prévio com o motorista da van⁷ que diariamente⁸ me buscava na escola, eu chegava⁹ na porta do supermercado, onde minha mãe me esperava com a lista de itens a comprar na mão¹⁰. Ansiosa pela missão de dona-de-casa¹¹ de riscar sistematicamente os produtos escritos em letra cursiva, metamorfoseando-os em objetos reais dentro de um carrinho de ferro. Continuava até o momento em que o meu pai nos encontrasse entre os corredores paralelos¹² com o cheque e as chaves do carro.

O período intermediário¹³ eu aproveitava para me aventurar entre as pessoas desconhecidas. Espionar, inventar histórias sozinho ou apenas procurar algum doce, revista ou brinquedo para comprar. No dia que quero descrever¹⁴, em meio aos objetos comuns¹⁵ nas prateleiras infantis¹⁶, encontrei alguns bonecos de soldado, no estilo Comandos em Ação¹⁷, que me chamaram a atenção. Eram simples e baratos, porcamente fabricados, com rebarbas de plástico nas juntas dos moldes.¹⁸ Pintados com spray de linha de montagem, borrados nos cantos e com detalhes pintados fora do relevo ao qual pertenciam.

Fiquei maravilhado, e como haviam vários soldados do mesmo modelo, inventei um critério emocional para escolher aquele que levaria pra casa.¹⁹

Personifiquei o vencedor, dando-o²⁰ uma história cheia de segredos que apenas nós sabíamos. Da forma fácil de amar que só as crianças conhecem²¹, brinquei com o boneco de ação dentro de sua embalagem com infimidade²² e sincronia²³ nas horas que nos cabiam, temendo apenas ser privado do direito de comprá-lo²⁴.

Procurei minha mãe e ela estava na fila dos frios, um dos últimos lugares antes do ócio de esperar meu pai para irmos à²⁵ fila do caixa. Lá²⁶, me deixou levar o pequeno boneco para casa, provavelmente achando graça de ouvir um pedido tão cheio de “por favores” usado para adquirir tão barato objeto²⁷. Extasiado por tudo estar ocorrendo como sonhara²⁸, comecei a imaginar as futuras aventuras que teríamos, eu e o soldado²⁹, já que, a partir daquele momento, ele se tornou oficialmente meu.

Foi quando³⁰, por descuido, deixei-o cair no chão,³¹ no meio do corredor. Desatento, um cidadão anônimo³² pisou em cima do plástico frágil, rachando-o³³ das ligações da perna ao tórax, mutilando meu soldado³⁴. O som foi mais macio que o comum. Me fez estremecer.³⁵

Não haviam nesse supermercado suburbano funcionários interessados pela cobrança dos itens quebrados, nenhum empecilho³⁶ lógico para a troca do brinquedo quebrado por outro do mesmo modelo. Enquanto eu chorava debilmente que aquilo que amava como criança não sofresse, desejando que tal acidente nunca tivesse acontecido, todos ao meu redor, alheios aos meus sentimentos³⁷, aconselhavam que o trocasse por um dos vários produtos iguais aquele. Peguei-o do chão e o abracei. Permaneci assim até o momento em que cheguei em casa, exausto por tudo o que acabara³⁸ de passar.

O boneco não existe mais, não consigo imaginar ou lembrar o que aconteceu com ele. O mais provável é que foi jogado fora algumas semanas depois³⁹. Permanece até hoje⁴⁰ a lembrança do tormento silencioso de não poder fazer nada quando as coisas dão errado.⁴¹ De observar passivamente enquanto algo valioso é tirado de mim em sua totalidade.⁴²

Hoje talvez, sou eu que estou quebrado⁴³. Quebrando⁴⁴. Com pés enormes amassando o meu corpo⁴⁵, só que, ao contrario do soldado, não há nenhuma criança inocente para chorar por mim.⁴⁶

2016 abril




NOTAS⁴⁷:

  1. Texto que este que vos fala escreveu pra uma cadeira que eu desconfio ter sido Gêneros Textuais porque o sobre-o-que do trabalho foi escrever uma crônica. Isso na época que eu fiz dois períodos de letras-licenciatura numa faculdade particular e odiei, com meus dezessete aninhos. Tive que pagar cinquenta centavos e materializar esse texto em uma A4 pra poder entregar porque ─ pra não falar a idade dela, o que não seria cortês da minha parte ─ essa senhora era stan do Rubem Braga. As correções e observações dela sempre eram pasquale-no-telecurso de comprometimento com escrita-criativa e, pro extremo suador do luanzinho-introspectivo-e-introvertido desses tempos, ela me fazia, sem coerção nenhuma só a de todos os olhares vendo se eu ia, ler na frente da sala. O que não me instigava muito, literariamente falando, e é justamente o que eu acho interessante ver hoje-em-dia. Eis, portanto, e espero que a valha, os frutos de uma bolsa cem-porcento do PROUNI.
  2. Escritos agora, fica quase sem-dizer.
  3. O vício de adjetivos e advérbios redundantes pra dar saborzinho, desde-então documentado.
  4. A gente precisa conversar sobre ênclise na literatura contemporânea e essa deixa é tão desproposital e irrelevante como qualquer outra. Pra que e por que ênclise em monólogos internos, gestas de eu-lírico, discursos-diretos de diálogo &c, em que esses pressupostos enunciadores são brasileiros natos ─ tão improvavelmente usando ênclise na vira-real-IRL quanto vosmicê e sua-graça ─ não-ironicamente dando pronome pra verbo? Mesmo narração-onisciente ou o que-quer-que-seja o nome que a escolinha dá pra isso agora, mesmo o olhar sobrevoante e mergulhatório. Que cadelagem é essa que até nossa voz descorpórea paga de tuga? É justamente aí que nos pegam, eu acho. Eu tenho uma coisa com O Sol na Cabeça desde quando saiu, e quando saiu ─ se cês não tavam num dos campi da UFOP ou nos copo-sujos (quem vai me corrigir esse plural agora, dona professora?) de Mariana , cês não fazem ideia do quanto ─ eu era obcecado nesse livro. Eu ainda tenho o primeiro .mobi que eu baixei com as notinhas e destaques que eu fiz na época e tudo, seria até outro texto comentado pra postar aqui se a Cia. das Letras não fosse me dar no rabo. Essa coisa, a coisa que eu tenho-com, é que eu acho que enquanto cenário literário a gente já passou da ondinha-torta de hipercorrigir a nossa própria voz pros padrões do Vieira, pelo menos todo mundo menos eu em 2016, que era cabacinho. Todo mundo sabe mais-ou-menos que isso é pagação demais, e, sem querer dar mais importância do que é merecido, esse fenômeno de enclisar e mesoclisar é o equivalente gramatical de assimilação e epistemicídio. Mas quando a gente se pega na terceira-pessoa, pega-se, entende? Eu tenho a total humildade ─ humildade real e justificável ─ de não ser a pessoa que vai fazer uma resenha ou ensaio sobre esse livro, não é meu lugar específico, então eu venho há anos esperando alguém apontar isso e abrir essa conversa. Mas o silêncio é ensurdecedor. O Geovani ─ e aqui se abrem possibilidades de teses inúmeras em genética literária, sociolinguística, morfossintaxe e estudo de casos sobre o mercado editorial, ao contrário das que existem até agora sobre esse livro, que são sobre o sujeito, a identidade, a representação, a figuração, a ‘oralidade’, como se qualquer uma dessas coisas tivesse em xeque fora do locus acadêmico, onde cê tem que provar pra eles que é gente ─, faz a escolha de recuar um pouco daquilo que torna a o livro dele sui generis entre os best-sellers quando quem empresta voz-narrativa não é, também, personagem. No caso, a tal da ‘oralidade’. Gente, peraí, chega desse papinho de oral, a gente real não tem mais essa idade. Se sua escrita não concede pro jeito que cê usa a língua pra se comunicar, cê tá pirando de quê? Se cê não gasta-hora analisando que fenômeno linguístico cê tem que grafar e que fenômeno já fica meio implícito na fonêmica ─ tipo diferenciar consoantes sibilantes do arquifonema /S/, uma coisa que não diria nada sobre nada além de que ox cariocaix parecem menos com cobras peçonhentas quando num contexto de discurso-tenso os sujeitos forçam concordância de plurais como se o artigo não desse conta do recado ─ e chamaria o olho atoa, o que seria meio que a chicobentação-negativa do seu texto, senão nessas coisas, em que cê gasta hora-em? Não é ‘oralidade’, quando Hans não pode te ler cê também escreve assim, igual cê fala, igual cê pensa. Aí essa coisa meio engessada de poética-de-rede-social, de quem se inspira na Carolina mas escreve como o Dantas. Isso abre brecha pra galera ficar pagando pau pro Guimarães Rosa, o que eu acho imperdoável. Mas aqui tem um caroço. A confiança necessária pra arriscar vem, mais vezes do que nunca, da seguridade ─ interna e social ─ de poder negar a norma de propósito. Isso não-sem deixar implícito no texto essa propositalidade. O ‘não é que elu não sabe, é que elu não quer’ da coisa. Principalmente quando a sua ‘identidade’ já é marginalizada e cê tem que lutar contra um estigma antes de poder fazer qualquer outra coisa. Principalmente quando as narrativas estabelecidas no mercado pressupõem certas coisas. Pega os contos entre as genialidades que o Geovani se deixou nos presentear, entre as joias-raras escritas em narrador-personagem, e vê. Não é que sejam ruins, nem sequer medianos, muito pelo contrário, o livro é todo merecedor do hype, um dos poucos nos últimos dez anos. Mas tá lá esse índice. Leve-leve, nada gritante, coisa de pegar-pra-ver, se não viu. Quase que por receio. Quaaaaase que por orientação do projeto editorial. E isso, pra mim, não diz tanto sobre o livro quanto sobre as nossas possibilidades daqui pra frente. Mas, mesmo assim, diz sobre o livro. Aí hipóteses pra além do que eu já disse: seria isso um comentário ─ involuntário, talvez; e enquanto comentário eu quero deixar aqui posto que pra tanto tem que ser necessariamente textual e aferível, o que, enquanto argumento, não sei se posso botar o-meu-na-reta ─ sobre o olhar? Será porque a narrativa em 3ª desponta enquanto campo de legitimação ─ tanto da escrita quanto dum escritor-de-estreia ─ e serve ambiguamente como o local em que o autor afirma sabença daquilo que ele nega enquanto projeto estético e, porque ambiguamente, o lugar onde o prestígio linguístico perde sua politização e é só linguagem-literária? Há ainda, por aí, embora não assumam em público, pessoas que acreditam em 'linguagem literária'. Ou, talvez, isso tudo é só uma coisa que se faz, igual letras maiúsculas, paragrafação, deixar te transformarem em commodity &c. Eu tendo a acreditar mais no segundo desdobramento da segunda alternativa pro porque e pra que da ênclise ainda existir por aí. Começo-de-frase é só o subterfúgio pelo qual a linguagem se faz alheia e flerta com a tradição. Tradição essa que, de passagem, nunca deu nada pr’a gente. Se a gente já sabe que em 1ª a coisa continua a mesma e a gente pensa com as mesmas estruturas que deixamos escapar quando emocionados, pelo menos na grande maioria das variantes: não justifica. É, no fim das contas, sobre a posturagem do narrador no panteão da literatura brasileira, é sobre esse ethos-discursivo. Inclusive, em começo de frase, pronomes são desaconselháveis, descritivamente-falando. A coisa fica no contexto. TCC sobre isso não falta.
  5. Capaz que a vèia ia deixar isso passar batido. A caneta vermelha deu pinote nessa parte do papel.
  6. Bem The Suburbs ─ Arcade Fire pra quem cresceu em COHAB. Mas vai ver é justamente isso que eu quis dizer. Suburbano tem essa conotação, muito por-causa da distribuição demográfica de Sampa-São-Paulo, mas a denotação de subúrbio sobrevoando a palavra, possivelmente, esconde descontentamento com a palavra periferia como candidata. Vai-ver.
  7. Esqueeeece. Tem questão-de-classe em van. Embora, por vezes, van denuncie ausência de carro. Entre uma coisa em outra: rabo no burro, pau na piñata.
  8. Ok. Meio redundante.
  9. ‘Era deixado’, seria o mais generoso em termos de entendimento.
  10. Ok. Ibid. nota 8.
  11. Não é me defendendo nem nada, longe-de, mas eu não acho que isso era pra ser especificamente uma tiradinha chauvinista de papéis-estabelecidos ou those-women-right-fellas. Quem viu o divórcio pode atestar, eu era bem nenê-di-mamãe, feministo e tudo. O que fica patente é a falência-múltipla de pintar uma imagem sardônica, toda essa parte, todo esse parágrafo. Dá pra sacar na divisão desnecessária entre necessidades e supérfluos, o-não-tão-sutil rituais sagrados e o contraste entre letras cursivas e carrinho de ferro. ‘Porque o capitalismo é tipo como uma religião tá ligado?’ Essa percepção até recontextualiza meus comentários sobre subúrbio e van, qualquer-quem que distraído vai ser pego na malhação de um adolescente de dezessete sem nem dar pro texto a presunção de inocência. Não era sobre ser boy, sem auto-consciência, era sobre falar mal da classe-C governo Lula. O que o texto não é inocente de fazer, no entanto ─ e com pouca manha, inclusive ─ é pintar aquela velha caricatura de consumo como consumerismo. O pitoresco e os lugares-comuns apontam pra essa inferência, que se trata do deserto-do-real de tirar um dia do mês pra ter o de-comer e o de-sucrilhos na mesa. O que eu não acho só cringe mas extremamente gauche, inepto e antirrevolucionário. Se eu ainda tivesse os livros que eu doei pra casa-de-caridade, que tava em-falta de freios nas rodinhas das macas, eu tirava da estante o Massaud Moises lindíssimo de capa-dura que eu tinha e tirava um instante pra falar sobre a estruturação genérica da crônica e tal &c. Mas eu até já acho que dá pra perceber pela tentativa. O sujeito pega uma efeméride, recente ou recessiva, e se vira com ela. Faz qualquer coisa, dá uma moral, enfeita, com-sorte tira alguma coisa. Não foi exatamente o caso.
  12. Ibid. nota 8.
  13. Intermediário entre a minha cena chegando no supermercado e o meu pai chegando do trabalho com o cheque, quer dizer. Zero zelo pela compreensão do outro, outro vício desde-então documentado.
  14. A transição suave.
  15. Cansativa essa coisa de assessorar todo substantivo, viu. Evitar.
  16. Não somente ibid. nota anterior, mas também um problema sintático. As prateleiras é que eram infantis? Diria a professora, quer-dizer. Eu não. Eu nunca.
  17. G.I. Joe, Policarpo Quaresma do português, pode falar G.I. Joe. É suave. Kireno não vai sentir a falta desse léxico, te garanto isso. Poupava até a cacofonia.
  18. Eu sou uma pessoa simples. Rebarbas de plástico nas juntas dos moldes é uma frase boa e eu vou dar isso pra ele. O resto tsk-tsk, não-não-não.
  19. Um caso clássico de paragrafação precoce.
  20. Vide nota 4.
  21. Risos. Os miacoutistas piram no singelo infantil. Ó meudeuso o sapinho na mão dele. Nem o Rubem Braga ia jogar tão baixo.
  22. Aparentemente uma palavra.
  23. O que-que isso pode sequer significar? Que-que cê tá querendo dizer?
  24. Ibid. nota 20. Além de hipercorreção.
  25. Não sei se a melhor preposição nesse caso.
  26. Na fila dos frios, não no caixa.
  27. Eu não sei o que apontar em específico nessa frase toda, mas talvez uma reescrita. Talvez os tão? Se bem que em tão barato objeto esse arrasto do nome pra depois de um desfile de qualitativos ─ figura-de-linguagem que com certeza tem nome e CPF numa gramática por aí mas eu tô grato em não lembrar ─ é chatão porque pede bença pra umas gastações pseudo-simbolistas.
  28. 🤢
  29. Eu e o Brasil em 2018, dizem as más-línguas.
  30. O momento catalizador, o clímax, o inciting-incident.
  31. Essa virgulação tá podre. Parece um anteposto mas não é, anteposto seria a construção seguinte antes. Acho. Não vou analisar muito.
  32. Cunhado do Brasileiro Médio.
  33. KKKKkKkkkkk rachando tô eu, viado.
  34. Eu não quero comentar nada sobre o psicossexual da coisa. Esquisitão. Abafa.
  35. 🫠
  36. Uma das palavras mais feias, não tem nada que me convença que não é com i. Um exemplo forte de arquifonema que merece atenção especial, contra a regra que eu postulei na nota 4.
  37. Ibid. nota 28.
  38. Esse tempo verbal não tem direito nenhum de aparecer aí.
  39. Literalmente Toy Story 3.
  40. A-ma-do.
  41. Ibid.
  42. Ib.
  43. Ib.
  44. Ib.
  45. Ib.
  46. & al.
  47. Well. Que ótima experiência. Quantos aprendizados. Primeiro eu acho que o título foi bem apropos, se eu me lembro bem ─ e sim, foi um rolê real que aconteceu, o choro e tudo ─, o problema com o boneco foi que o soquetezinho da perna quebrou, o que ligações da perna deixa pouco óbvio. Isso-em-mente, senti falta duma exploração maior da perna do boneco solta no saquinho dele, outro marcador de tão barato objeto que eu perdi a oportunidade de enfatizar, o saquinho plástico grampeado num papelão impresso. Essa estética 1,99 é muito próxima ao meu coração. Imagina o gore do soldado preso com o membro decapitado num negócio que pra todos os efeitos pode ser um instrumento de tortura, nisso qualquer inferência a soldados reais ou qualquer coisa assim. Mas é meio óbvio que o texto começou de baixo pra cima, a ideia da personificação e conseguinte projeção, tanto na hora quanto retroativa. É sobre agonia e, provavelmente, depressão. O tal do 2016 não foi um ano muito fofo pra mim, como se evidencia acima. Eu não sou nenhuma criança inocente e, por Deus, não quero nenhuma criança chorando hora nenhuma por motivo nenhum, que onda errada. Não sou nenhuma criança inocente, mas eu vou ser empático com a situação do colega aí. Triste demais. Quantos likes essa tristeza merece? Levanta a cabeça, tristeza, senão o neurotransmissor cai. Na primeira máquina-do-tempo eu te mando uma cartela. Aliás, eu não só consigo lembrar e imaginar o que aconteceu com o boneco como também tenho certeza que eu conseguia lembrar e imaginar o que aconteceu com o mesmo boneco enquanto eu escrevi esse texto. Imagina mentir. Imagina inventar num texto ficcional. Alguém avisa pra geração-escrevivência. Chegando em casa eu colei a perna com super-bonder, na vertical, a história quando eu brincava com ele era geralmente que ele tinha sofrido um acidente e tava vivendo muito-deboas com isso. Um auge de representação de PCD. Hmm, pensando agora, todo esse chororô por causa duma perna, mesmo que só metafórica, me parece meio problemático. Bem able-bodied da sua parte, melhore. Sabe aqueles guarda-chuvinhas de ‘chocolate’? Isso mesmo, bengala. O cara ficou galante. Um tempo depois eu quebrei essa perna de novo pra colar na horizontal pra ele poder sentar. Serrei no joelho e queimei a ponta pra dar uma aprumada no eixo e ele poder ficar em pé sozinho de novo. Modestamente a amputação deu uma personalidade pro cara, mesmo criança eu não perdia a nuance relacionada à guerra. O fim do brinquedo é inconclusivo mesmo. Minha mãe foi doando paulatinamente todos eles; bem Toy Story 3, ainda. Mesmo os customs e os desfigurados, porque apesar de ser meio faz-pensar ter outra criança brincando com alguma coisa que eu destruí ─ e eu destruía muitos, meu negócio era brincar com lupa ─, não era nosso lugar escolher quais brinquedos eram ou não aceitáveis. Não é como se toda doação é aceita, então é bem-possível que ele foi pro lixo mesmo. Mas todo mundo vai pro lixo, hora ou outra. Isso pinta outra imagem, não mais a criancinha inocentemente afável e de amor puro-e-fácil, porque eu gostava demais de zoar com os brinquedos. Eles lutavam, ué, faz parte do fingimento, é um comprometimento com a cena. O que me leva a crer que esse dia no supermercado foi menos um tratado sobre a importância da literatura infantil ─ mesmo que pra adultos infantilizados, mesmo que no lugar de literatura sejam reels ─ do que só um infante mal-lidando com transtornos emocionais. No meio do supermercado, inclusive. Quem pensa na mãe? E se eu tiver que deixar algum parecer ou insight pras próximas gerações, que seja isso. Pra quem perguntou, depois que eu tive que ler na frente da sala ─ adoraram, inclusive ─ eu contei a verdade. Mas no texto texto-mesmo, esse bummer. Como assim algo valioso tirado d’ocê ‘na sua totalidade’? Eu não quero nem ler muito no que isso significa. Melhore. Sargentoco fez toda a diferença na guerra de cem-mil anos contra o Papa-Burger-espaguete, o bem venceu graças às contribuições, não heroicas mas contínuas-e-confiáveis dele. É uma vergonha que ele tenha sido homenageado desse jeito, agora já era, não pode mais dar moral pra milico. Mas ele viveu bem, tankou geral. Não servia aos propósitos da minha situação, que foi o mote da coisa, considerar e assumir que pra muitas coisas ─ a maioria, pode se dizer ─ se ajeita. Mas eu acho que, em algum nível, é sob isso. E se pisar, que pise bem.

2022 junho

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