elogio à verborragia (3/5)

 


O presente texto é a reprodução, basta que seja, embora bastar não seja o suficiente. Tá aí pro mundo rasgar o bagaço pra fora da casca e engolir com o amargo do caroço, sem mastigar. Me dei a omitir, o que nessas passagens não encontra termo. Esse é o núcleo-sensível da coisa toda, infelizmente. Basta saber que todos esses problemas foram resolvidos e muito bem. A essa altura envolvidos, desenvolvo um pequeno índice:

(1/5)
29 Mai - Queria um prefácio do Georg Rudolf Ling
30 Mai - Queria um prefácio do Jacinto do Prado Coelho
31 Mai - A fórmula da água

(2/5)
1 Jun - Mas e a narrativa do delírio?
2 Jun - [⁂]
4 Jun - Felo-de-se
9 Jun - Ego vivo
12 Jun - Le défàut d'un sujet

(3/5)
16 Jun - L'Usignolo della Chiesa Cattolica
17 Jun - Ri criança, a vida é bela
19 Jun - Oliendo los vapores de macho etrusco que exhalaba ese hongo lunar
20 Jun - Il lupo perde il pelo ma non il vizio


16 Jun - L'Usignolo della Chiesa Cattolica

Eu não pude resistir, não pude, não havia como, leio Diário de um Mago; rio, paro a leitura pra pensar, penso. Do alto da varanda do meu quarto, corro os olhos pelo rio que também corre, e que, por baixo da ponte do caminho da biblioteca, cagado pelos encanamentos das casas que lhe servem de cílios ─ com a visão da Chácara por trás da quadra e a visão da Serrinha por trás disso tudo, até o Cabanas ─, enquanto paro pra escrever, não, paro de escrever, não... E esse não é o Petra, repenso ─ sem ironia agora ─ que eu devia escrever esse tipo de banalidade boa, dos rios, das linhas curvas, do Tejo, talvez, ou aquele que faz a primeira letra de [⁂] num dos berços em que a civilização branca foi tratada como um moleque irresponsável, mesmo o Carmo, revidando o Cláudio Manuel da Costa com o que todo mundo da Prainha sabe mais eu sabia quando morava no Rosário: tem dias que nem sacola isso arrasta pra frente, essa coisa morta. Só é rio quando chove. Só nos serve a Cachoeira Cristal, a Da-Linha-do-Trem, e olhe-lá, porque não aguenta os nados. Não sei se a Serrinha desbica aqui. Mas sei dos Alpes.

Preciso cheirar de perto todos esses titãs. Preciso cheirar: e isso me assusta um pouco.

Quando n'algum dia nessa semana eu li numa crítica 'arcadismo nos anos noventa' onde era 'arcaísmo', culpa dos óculos¹, pensei no Coelho, porque lia esse livro, e ambos termos couberam. Desde o século passado melhores no ramo que eu sabiam que o querido-leitor-querido, além de construção, é como um pastor que não sabe se as ovelhas entendem as estações europeias mas as finge conhecer fundo, ora, aquela que manca e chamei de Dolly, àquela malhada chamo de Sonho, e embora pareçam não entender os nomes e as coisas, são inteligentes como [⁂], por isso a identificação, lã branca pra brancos dando rolê como uma Barbie na Africa, a imaginação fruindo fraquinha como se qualquer coisa fosse super imaginativa. E o cara não é menos que isso: um white-trash outfiteiro, um Aesop bíblico de creche, desbravador de trilhas pisadas, eis o aedo do Brasil. Todo escritor negro que conta as suas traduções pra fora aciona a apreciação desse cara ─ o autor, mudo de dêixis ─ que tarda a deitar.

Cago no arcadismo, coitado, não sou o primeiro. E a galera lê essa merda, se sentindo sinceramente contemplada. Gente gente-mesmo, que pega ônibus, ou que protesta pro PT ou que votou no Aécio, senhoras e senhores sonhadores, com olhos d'agua nas rimas de infinitivos com infinitivos daquele Bráulio Bressa com aquele chapeuzinho de [⁂²]; e eu sou o quê, cá comigo, um réptil então? Existe uma cisão em qualquer "nós" possível quando eu falo do povo e penso que esses são os maiores textuadores na minha língua materna ─ não por nenhua escolha que se faça ─, a primeira em que chego pra reclamar da vida, automaticamente a única em que tenho paciência pra conhecer pessoas novas, é como se me excluíssem de uma festa, como se me obrigassem a comer ração, sentindo a culpa de ser um dos poucos esnobes aburguesados que prefeririam lasanha gourmet, e o único conforto que encontro nessa constatação é imaginar no país uma grande quantidade de analfabetos, por esses lutarei se chegarmos às vias de fato, os outros que se unam entre si. Ou nem isso. Não sei.

Aproveitando o twitter, agora que perdera o patrono das vetustas vedetes da ditadura, relatando a realidade da tortura pra quem previamente creu no vento conversando com a areia e com o sol, e que, agora, bem-vindos ao vinte-e-um, não creem em nada, que sejam acolhidos ao deserto deserto-mesmo do real; podemos, sem ameaças à segurança, pastorear seu œuvre em direção às pirâmides que falam a linguagem de quem não tem nada a contribuir a conversa alguma, procurando profundidade em paisagens, numa espada, nada, nada, na aniquiladora edificação de nada; dá pra ver essa vacuidade pelos satélites? O vazio peremptório?

Apesar de também duvidar da minha sinceridade, às vezes, muito aqui na tentativa de me fazer carismático na escrita de mim, muito só pra me colocar no lugar de uma pessoa-pessoa, por ter passado por uma busca espiritual quando a escola não me cobrava o tempo que depois cobrou o vestibular, portanto relativamente tentando me recolocar nesse mochileirismo existencial: na marca do 1% do ebook eu já tô de-saco desse narrador: um mimadinho de merda, uma bunda limpa pela mãe, boyzinho Demolay como muitos que encontrei. Típico classe média fingindo ser povo pra um povo que finge ser classe média, a ausência de disciplina que percorre a narrativa ─ e que é sintomática da ainda existência inquestionada desse livro nas estantes das mais novas reedições, contando traduções, como se insistindo que esse livro merece qualquer língua que as de-labareda duma fogueira qualquer ─ é sintoma de um recorte de classe. Essa prosa é ideologicamente nociva pra qualquer proposta de empoderamento intelectual do povo brasileiro, não digo menos que isso. Esse esoterismo de colecionador de livros com cheiro de AAS, esse misticismo pseudo-eclisiástico, é uma ofensa pra qualquer doidinho por aí que quer ler os próprios relevos e desencaixes fora da lógica medicalista ocidental: não sou dos signos, mas acho que essa galera não merece isso.

Há, no cerne do oeuvre do cara uma inabilidade em interagir com o grosso filológico da própria epistemologia, porque não tão inteligente assim, e, contraintuitivamente, de se fazer divulgação-científica, pois mais burrinho ainda. Não atoa são as crentes que compram essa merda. E os rosacrúcios.

Toda esperança muito-colocada na justeza do mundo nasce duma primeira-infância redomada num espaço de distanciamento do real. Dinheiro, é o que é. O sossego de quem pode ficar parado. Toda forma de expressão artística nessas linhas encontra nessa gente o cabresto-sem-mão da necessidade íntima de retornar à paz inicial duma família financeiramente estruturada. Muitas vezes traumas, que não o da pobreza, reafirmam essa necessidade por ordem. Coisa de papai-separou-de-mamãe-com-eu-pequeno das ideias e presentes dobrados, quadruplicados, nos feriados. O adulto dessa galera tende a ser uma abertura pro mundo: levar um chingo dum primeiro mendigo, ser roubado em casa, descobrir que não foi um encosto que desmoronou a família idílica que tinham na infância era na verdade uma secretária, gastar a herança num vício, exemplos abundam.

O esteio dessa gente não é amadurecer com as expectativas, mas regressar. Pra isso eles precisam de toques secretos nas próstatas uns dos outros, qualquer pessoa sem suporte de uma família nuclear boazona pra pegar rabeira quando os emplastros esperançosos não funcionam, ia tá morta antes da viagem. Que não tivessem tido a chance duma educação na ponta da vareta de um tutor não teriam a chance de fritar errado assim: geralmente os ricos são mais desenvolvidos em termos de cope, é verdade. A classe média é meio burrinha, acontece.

Mas é até provável que a elite leia isso também, oh, não duvido muito pela forma que as coisas tão. Releem se preciso, tirando essa que vem pra universidade odiar os pais, imbecis como o meu, tendo como não-escolha evoluírem um pouco pra nunca voltarem pros jantares nos Jardins cariocas ou edênicos da vida, como eu, Tião e Oswaldo na mesma nota, não volto pro chão da fábrica. Tem coisas que eu sei que nem a Pagu sabia, ensino pra alguns aqui. Vivendo de pensão, eu e eles, mas, ah, que disparidade de renda, eles podem ir à Miami, Disney, Porto, Paris, 上海, دبي, e trazerem em sacolas estampadas as impressões importadas, em souvenirs, de uma suposta sociedade avançada, ou de magia espiritual exótica ─ e melhor-escritas que O Alquimista, que cheguei até confundir com o outro livro ─ em línguas que até falarem em inglês com os taxistas consideravam mortas. Depois da gorjeta em dólar se consideram taxônomos, eureka, eles podem arrastar Vigílio entre os vales e labaredas do inferno desta terra de merda e voltarem pela luz-rabeta, estrela porta-flama dos rituais noturnos, Noronhas e não-Noronhas sob o Cruzeiro-do-Sul, se iniciando na ordem milagrosa de não edificar a própria casa com o cal que gruda nos regos das unhas.

Ler um Paulo Coelho é muito melhor que ler Brás Cubas, jouissance e não se fala mais nisso. Às vezes sofisticação e habilidade, ou o mínimo de competência, faz mal à antropologia e transforma a arte em academia; precisamos ler a mediocridade, criança malcriada, não só, mas quando ela não se reconhece no reflexo do rio, correndo e gritando enquanto a mãe compra lírios na campina, numa versão do mito em que não recusa companheiros da mesma casta, Nemesis trampando menos que eu, e Eco nem mesmo repete, nem mesmo se gasta, a tanto não definhará em busca do entendimento do outro que não se entende... Sairão por aí, belos, casal secreto de três, sem sombra de dúvidas, pra montar uma família evangélica, ou pior, artista, e ensinar ao Raul as delícias de cheirar um pó. Mas depois dos 27? Como assim o Raul não tava cheirado até os 27? Que louquice-de-porra de mundo é esse?

O divertido da psicanálise bem-lida é usar palavras cujo sentido flutua sobre o mar manso do senso-comum como o diagrama do aparelho psíquico, compartilhado nas timelines, um iceberg-balize, e nesse sentido falo de recalque: é foda, pra qualquer escritor de espírito, falar mal do Paulinho sem ser colocado na camisa de força da inveja ou seja lá o quê, no impedimento de que o número de exemplares seja um carro grande, um arranha-céu ou um cachimbo fundo daqueles que desviam libido pra palavra; caguei pros números, minha vida seria, em sua a plenitude, comprável por cem dólares semanais ou menos, muito menos, se distribuíssem drogas no SUS. Vivo hoje em incomparável miséria, e sou fluente em línguas suficientes pra me garantir um emprego qualquer nesses termos. Ou conseguiria, fosse branco, como muitos falam que eu sou.

No extremo disso me faço pensar, quase todo dia, que não quero cobrar pelos meus livros, não quero viver da escrita, e o problema de achar uma editora tá nisso, um pouco, ou em completo, quero versões digitais gratuitas: não por motivos morais, não por qualquer ideal, mas pela praticidade, tudo que se vende no Brasil assume aspectos de serviço, todo escritor tem compromisso com o ProCon. Não tenho saco pra SAC, cresci na internet pra saber que não ganho nada com comentários [⁂]. Quero uma crítica que seja bordado ponto-livre pra fora do fino esboço que tracei: que se absolutamente foda quem foi tocado pelo que eu escrevi, não produzo toalhas de banho.

Com tudo dito e mais coisas cuja preguiça condensa em suspiros, ainda é muito fácil, no ano atual, se sentir um poeta romântico, não? Apesar da minha posição política, cravada de tão imóvel, e da vontade geral de ser útil, não consigo não cagar pra minha ilegibilidade; se as pessoas não conseguem entender as metáforas do porrinha-rala suco-de-jabuticaba-comprado-e-de-caixinha, essa semente aguada, do mestre alquimista, escrevo apenas em latim eclesiástico; e se ele entende, entre todos os contemporâneos, a necessidade de se disponibilizar de graça, quem sou eu, concordando em número e grau, se não um franciscano, se não alguém que pagaria pra ser lido. Três reais a lauda. Tiro das drogas. Da comida já tirei ─ muito pra isso mesmo.

Enquanto isso, da torre ao leito, Dedalus precisa ainda chegar onde cheguei.



17 Jun - Ri criança, a vida é bela

Mas alguns leem Casimiro, ou Carolina, ou Lima, espero, e não me acho em nada melhor qualificado, creio que tenho pouco a dizer, muito menos; mas digo, e se consigo sustentar os pratos duma opinião, mesmo que não minha, sobre as varetas do texto, cada qual girando à sua maneira, é porque venho vencendo minha vingança com o real nos apagamentos dos meus gestos individuais. Permanece uma espécie de gênio-coletivo, que fala as mesmas asneiras que os demais, que falseia em fantástico. Por que insisto? Porque sim, é a vera resposta, e daí, porque essa condição decadente, que me colocou a sorte, me deixa, como quem não quer nada, na boca de cena dessa necessidade de poder pelo menos me justificar, como que pedir desculpas a essa missão que assumi com uma criança que nunca cheguei de fato a conhecer mas coincidentemente possuía em seu nome, na exata ordem, todas as letras do meu.

Faz tempo que não choro, mas já chorei feio, da testa doer, por coisas que não fazem sentido agora, nem no nível mais emocional, mas entendo. Quem era olhado torto, piada-pronta, quem os moleques chamavam de Luana Piovani e até hoje não consegue acompanhar as tretas dela no twitter apesar de rir.

Esqueci de contar que tô sem terapeuta, meu pai parou de pagar, o que explica muita coisa. Já disse que não gosto de mim, e antes que os promotores públicos das energias positivas e o caralho venham posar na minha carniça e protelar, eu sei que é um processo, tenho mosaicos de espelhos no quarto, eu boto fé nessa fita do racismo com a autoestima, olha pro meu rosto, tô indo.

Fico pensando no tipo de entrada a Carolina ia fazer se tivesse que levar os filhos no CAPS. O [⁂] eles acolhiam. Eu, no caso, passaram pra frente.



19 Jun - Oliendo los vapores de macho etrusco que exhalaba ese hongo lunar

Esses putos acham que leram mais Lemebel que eu? Tô pra contar essa história desde sábado às quatro, catando minha sombra pelas calçadas, voltando pra casa, formulando em voz alta na frente do Sagarana como embaralhar anatoliamente e fazer ninguém saber quem bradou o quê nas margens de onde; usar o corpo-corpo como corpo-simulacro do corpo-linguagem, enquanto o copo na mão era algo em si, já, vomitando junto comigo.

Queria fazer disso mais um nude, o extremo gráfico das veias e vias, e ainda é isso, mas só agora entendi que não adianta ballet, não adianta nem um bullet inteiro, não adianta um ritmo no íntimo, eu quero articulação, eu quero libras. Vem uma análise de três ou quatro casos.

Teve um rock junino, fui de cara, tinha a esperança de ficar bêbado chegando cedo, a esperança é a última de porre; aconteceu um quarto de doce, que não ajudou muito, já é pouco e o lisérgico era um MH370 desaparecido num oceano de cerveja, não daria nem por decreto o testemunho sobre se cuspi sem querer ou acabei engolindo, rolou um salve de chá também, só; comidas; o urbanismo insosso dos quadriculados de Riachuelo e maria-chiquinhas, mas pelo menos consegui dançar um pouco. Contextualizar vai ficando complexo demais, entre descida e outra ao chão ritmei nas rabadas algumas reflexões que andei achando lunares demais pra sobriedade, lacunares demais, como a não-obviedade de que não fomos nós que fragmentamos o ser como a ciência moderna fez aos átomos ─ por 'nós': minha geração ─ o descobrimos assim ao nascer, o reencontramos rebelde no pulir dos arcaicos espelhos de prata e pranto que nos foram herdados em sua opacidade semi-sépia e nostálgica, ao vermos, com olhos próprios, a dissemelhança entre nosso reflexo e essa peida-imagem que fizeram de nós no digladiar ─ direi 'argênteo' ─ argênteo ─ oras, tenho o direito de fazer tudo o que fazem, e continuo ─ das nossas inconsistentes vontades, nossas completamente ignoradas vontades pela vontade daqueles que fizeram de nós esses prédios abertos pra visitação, completamente observáveis, coleções, acervos com réplicas microscopicamente exatas das taças de Nestor, da Pitecussa e da Ilíada. O que? Eu de calça-colada e com uma galera da letras insuportável ─ qual de todas? é isso que cê tá perguntando? ─, praticamente bailarinas da Anitta, numa das neo-coloniais casas dessa cidade em que só o banheiros é coisa restaurada e por isso mesmo há uma fila, e ganhamos o que, pelo menos eu, que sou o mais letárgico dos sodomitas? Entende? E uma hora a gente levantou pra esperar a próxima música vir e comentamos sobre um casal na porta, posição clássica no kama-sutra de um baile funk de verdade, papai parado, copos de cerveja, mamãe rebolando pra caralho; a genialidade foi alguém falar 'só aceito assim, quem dança sou eu' ao que concordei em nove línguas diferentes, a quem nove cantos responderam, vindo de nove arcanjos de puras vestes de vento, cada qual provido de sua tese sobre Brookeback Mountain por João do Rio. Entende? Nesse causo, até onde quero confirmar, só eu fiquei sozinho. Não é nem pra reclamar. Certa-feita prefiro assim.

Se não entender o erro é meu, comecei pela epifania, sempre quis ser cineastra, escrevo roteiros, imagino os quadros e tudo, quase não posso ouvir música sem assistir as cenas que compus. Descobri ─ é no tranco de parar o tratamento que a gente descobre as coisas, é verdade ─ que toda essa fantasia é fruto da ansiedade, descobri em mim que é sempre bom irradiar a história do ponto em que tensão vira tesão, que é assim que se fisga pelo baixo ventre, sei lá ao certo, essas frases juntas fazem algum sentido, acho, então assim fiz.

A questão é que sinto minha corporeidade, termo generalizador ao limite, mas que se foda, generalizemos por fim, transpassada por uma empresa de militância e identidade, e os trocos não foram retornados senão em balas-de-coco, há muito presas nos vãos dos dentes. Três caras tentaram me beijar esse dia.

Um, o primeiro, amigo de uma amiga que mora comigo, por alguma fixação ─ há alguma fixabilidade a se assumir, nunca é 'te vi agora', nunca é 'bora lá', é sempre 'te quero há tempos, andando com essa sua fuça de quem vai destronar um ídolo entre as ruínas do academicismo' ─ queria porque queria que eu voltasse da minha tentativa de não perceber, ao que, pelo costume de me livrar dando presentes, ou por não me fazer mal nenhum ou não me gastar muito, pra adicionar um pouco do Pastor no rolê, fui; fui mecanicamente. O outro foi uma mina que pediu, não conhecia ambos, não gastei em conhecer, gastei em me sentir meio obrigado nesse elã emocional, de novo ─ po meu ponto -de-vista já era reprise ─, arrastado até, mas até aí ok, não sou desses de ninar o corpo masculino, que lhe deem pedradas, me deixei atravessar, quero só dar um mijo.

Mas o terceiro ─ segundo cronologicamente ─ me tirou completamente as pregas do aceitável pra lacerar o anelzinho tenso da minha paciência: me parou no rolê pra perguntar se eu tinha assistido Dear White People ─ ! ─, e, ouvindo meu não ─ cena a qual eu pagaria qualquer preço pra ver de fora, como espectador dos atrasados do ENEM, qual foi a minha cara ─, me ouvindo responder que eu tava planejando pra ver ─ mentira ─ em um futuro próximo, qualquer coisa sobre não ter tempo ─ mentira─, e que ao meu ver a negritude norte-americana não carecia de preferência na fila dos problemas que me gastam ─ verdade. Eu disse ainda tiveram muitas coisas que saíram esses anos et cetera, coisas de cinema africano, coisas de não ser série pra acdolescente acarentado de referências intelectuais, e ele ainda disse, como resposta ao que eu discursei, apesar disso tudo, que eu parecia um dos personagens. Eu parecia o fulano da série ─ era esse o xaveco todo. Confirmando que era realmente uma tipificação, deu risadinhas ─ que eu pagaria a mesma quantia ou o dobro pra rever o quão ensimesmadas na primeira fila do Coliseu.

Foi forte o quanto eu desli a pergunta. Desli demais. O resto do rolê fiquei refletindo de que universo essa situação me surgiu, quantas vezes desde que eu saí de casa eu pareci alguma coisa pra alguém, fazendo bingo de negros-de-óculos. Perguntei sabendo que a resposta era sim, sim, lógico que sim, se existe um grupo de pessoas que não se vê obrigado a pensar sobre a própria identidade num sábado anoite. Ele é negro. Abro pro óbvio esse detalhe.

Ele me beijou depois, num dos últimos giros que eu dei, me coloco objeto na frase como me coloquei objeto pra alguma coisa complexa demais pra desfiar ainda, beijei, pronto pra ir embora ─ como estratégia pra. O que rolou é que, quando me encontrando mais uma vez, a figura me explicitou que me queria, alugou a linha, segurou em pulso. Eu odeio que me segura. Eu podia tá muito doido de droga umas horas dessas e o sujeito se acha na graça de me segurar? Eu tava três-casinhas de descer o braço na fuça desse viado. Mas aí, como sóbrio, como muito sóbrio, aliás, descolando rolos, querendo sair saindo do rolê pra ver se achava mais um, pensei que a forma mais rápida era ir mesmo ─ é essa a lógica da esmola nas metrópoles.

Não durou, não duraria nunca, ele pediu pra continuar e eu saí sem tchau. Na manhã seguinte assisti o filme: o personagem, meio obviamente, era o do Tyler James Williams, o nerd com um black, o que escreve, o da cultura branca, o negresco válido, o que tem uma jornada de se-descobrir-como, que tem um encontro marcado às seis com um pertencimento, uma identidade completamente e ontologicamente circunscrita dentro da própria negação, segundo lógicas muito diferentes das que validam a minha. Se eu tivesse uma bolsa numa Ivy League os problemas quitavam pra mim, sejamos sinceros, se eu voltasse pro Brasil com isso no currículo e colasse nos mesmos lugares, com as mesmas roupinhas de lã, com os mesmos trejeitos, com certeza, de meia em meia hora, gritariam "Michael, Michael, eles não ligam pr'a gente!" e o Olodum e as paradas todas em volta de mim dando marcha. Não é?

Parabéns pro Netflix por filmar uma coisa que qualquer preto no ICHS conhece desde a escola primária, parabéns mesmo, e, excluindo as especificidades de um sistema escravocrata só parecido com o nosso, é um ótimo conversation-piece pra quem está começando; sendo esse exatamente o problema, o desencaixe, o quanto ser preto abre alas pra que te infantilizem, mesmo se a persona passista na pista do que veem seja um profissional do questionamento da própria pretitude. Eu não tenho tempo pra esse tipo de curso introdutório. Já tô em-curso.

Gostei de ver o quão real é que toda essa galera do filme vai fazer pós-doc, endividados ou não, com ou sem reeleição do Trump, enquanto aqui cortam bolsas de quem come miojo no fim de semana lendo o pacote pra ver se tem proteína. Como se eu não fritasse nisso muito-bem-obrigado sozinho, na tutoria que eu falei que ia trabalhar com o novo disco do Djonga e parei na segunda faixa fritando com qual era a minha perspectiva teórica a nível de discurso ─ COHAB, lightskin ─, fritando deme ver completamente fora de toque com a realidade de quebrada, de asfalto, ou de terra ─ sacado de tudo pra minha própria excepcionalidade alheiante e tão absurdamente cliché que dói ─, mais que tudo, não fui nem na batalha, nunca, falei que ia; ou de perceber as pocs e não-pocs me tipificando, hoje e sempre, do preto de óculos, quase uma favelada que escreve, quase, só que as crianças não me xingam na rua, as mães me apontam de exemplo de uma coisa que só entendo como exceção, as vizinhas não maldizem, não queimam o papelão que eu catei a tarde toda, as pessoas me ouvem como se eu viesse de Wakanda com carabinas de vibranium contrabandeadas via PCB pra muito educadamente dar o toque no Colegiado que aulas de Estudos Clássicos talvez sejam um pouco nocivas pra saúde mental do curso de letras da faculdade com maior número de ações afirmativas. Não só, não que seja ruim viver esse personagem de vez em quando, se me pergunta, é divertido, é produtivo, até, o quanto as coisas se revelam na esperança do meu registro, uma parada de heteronômio que pega em todos os aspirantes à escrita, por acaso sou um crente de bíblias-seculares suando no sovaco, de porta em porta em pregação? É engraçado quantas pessoas me odeiam e me admiram pelos fumos.

Os livros não dão de esconder em casa, estão em estantes, em mesas, sustentando móveis roídos do início da república, se dispõem no meu espaço de maneira análoga ao meu tempo; aí se cria essa imagem mole, quase uma miragem de mim, oásis da sede dos outros; os que me conhecem no rolê me chamam de fofo antes de oi, small-talk, e os que me conhecem pelo ICHS falam de mim como falam do [⁂] perto das alcovas dos Clássicos, como se eu não tivesse assistido Tv Globinho, como se eu não tava nesses LDRVs da vida quando tudo que se fazia em grupos de facebook era [⁂], vinte-e-quatro barra sete, como se eu não tivesse ouvido Pajubá do dia que lançou, cantando junto que se a vara não endurecer é só sentar na cara, entendendo a necessidade de estimular corpos outros que aqueles que já são, mas aí fodeu, não lembro se já falei sobre a práxis, e espero que não, porque essa é a hora, esse é o fim da introdução: o cu não pisca pros viados, o que eu posso fazer? A birosca sequer endurece pra nenhum dos universitários, verdade é essa.

Nada né, esperando às margens dum Ipiranga, à sombra dos palmitos, assumo ser palmiteiro eu mesmo, assumo, um pioneiro patético nessa contra-passeata, mais uma vez à frente do meu tempo por achar-errado ser único nessa cena, meu nome é Luan, tive uma recaída a nível onírico, o nome dele é Hetero Topperson de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Bragança e Bourbon, bacharel de ser bicha pela primeira vez eternamente, tenramente terno, boiadeiro dos banheiros públicos. De longe não um acossado matriculado nessa universidade, nem militante. Entende? Eu sou só o eterno-retorno do Proust descrevendo os aspargos, um século, em vergonha, atrasado. A paradoxalidade do anacronismo é real, é de uma rapacidade, a mais radical revolução está em se reparar com tamanho receio, realizo que não sei mais se fui eu que primeiro vi esporros nos cantos mal trabalhados pelo Fra Angelico ou se Didi-Huberman andou fuçando nas minhas toalhas sujas; admito que sou impotente perante aos James, aos Carlos e aos Cubas, deans & jeans & leans, e confesso que minha vida se tornou incontrolável, enxugo lágrimas de aerosol, vim a acreditar que um Poder Superior a mim mesmo poderia me devolver a sanidade, decidi entregar minha vontade e minha vida aos cuidados de Deus, como O concebia, fiz um minucioso e destemido inventário moral de mim mesmo e desisti dessa merda. Está entendido, não? Pedi pra Linn naquela música, e minhas preces não foram ouvidas.

E se toda a parrésia que parodio parece descarecer de conteúdo, revelo um pouco da problemática: sempre vivi à disposição desses meus relatórios, digo, trampei pra caber no meu devir como se viesse um dia a ser o patrão de mim, meu dossiê da Petrobrás, meu próprio herdeiro das herdades que minha espionagem de eunuco pelos reinos das ravinas racionais recolheu; que corpo terá que cagar as coisas que eu comi? A quem será consolidada essa ressaca líquida que bebo? Tenho medo desse medo: transar com alguém que eu quero, o tipo, pela primeira vez, um desses, cascas vazias e claras de crocância de polvilho, e de repente ser só um velho ao fundo, externalizado, vendo os corpos jovens, vendo o que Platão via batendo uma. E por que não? Digo como se fosse alemão do Chaplin que 'o que é concedido a toda humanidade desejo gozar dentro do meu eu'.

Tô brincando, em partes. De fato cometo o crime de gostar de pessoas masculinas. Mais-que-fato que isso mesmo, acho todos que acham inteligência atraente patéticos. Mais ainda patéticos os que acham que não se atraem por uma estética, quando se atraem por isso. Quanto a brancos: tive, sim, minha leva. Não vejo sérios problemas. Muitos deles se deixam assumir burrinhos quando o são. Sim, é um privilégio, mas é esse tipo de sair-do-armário que me encanta. Por aqui a gente tem que fingir que não é mesmo quando nos pegam sendo.

Não sei mais se por RuPaul ou pelo filme original, levanto pra passar café e imagino meu aparelho psíquico como a casa-móvel em Pink Flamingos, a figura dupla do bebê-mãe é meu Id, o resto que se foda no que tento compor mais uma vez o que egg significa nas minhas pulsões mais íntimas, passando pra direita com o dedo o catálogo dos meus objetos de desejo, semelhantes, tipificados, quero, quero, quero. Me incluirão nas rodas, vestido de todas minhas hipocrisias?

O pior não seria não achar ruim, ou achar, essa nem é a questão, não dá pra ser. Voyeurística ou não a coisa tem seu lado visual, tem seu lado excludente; misturo coisas, mas tá aí o mais próximo que eu chego de uma explicação pra Dorian Gray, uma explicação pro quanto eu li, uma explicação pra pseudo-assexualidade praticamente imposta: quem mais que eu, por mérito próprio, por qualquer merda que seja a causa dessa trama ou a consequência desse trauma, merece marejar sobre os corpos brancos, seja por ser isso a totalidade do que fiz ou porque fiz o que fiz só com essa finalidade, mesmo que inconsciente? Mesmo que enquanto sintoma. Será que essa galera acha que a UFOP, num anime, seria negra? Mas isso não para os 'mamãe's.

Acontece que em Dear White People, na verdade mais veranil, e sobre o que eu podia versejar por dias sem envelhecer, comprei completamente a caracterização da Sam White, é ela quem eu sou nessa composição de lugares fixos, é essa a minha treta e tragédia, com o movimento, com a universidade, com a cor, com o tesão, com a fruição da arte. Mas, no mais, nenhum. Nenhum deles. Hora nenhuma.

E se pra salvar a tcholinha duma conclusão cáustica na entrada de hoje tenha surgido n'ocê a noção de me sugerir que desconhecido nenhum pegará da minha performance essas sutilezas ─ ou que provavelmente essa pessoa tava bêbada ─, é onde eu entro dizendo: devia entrar na iniciativa desses putos de fazer jus ao meu ethos, ou que tá em mim mas não é meu, e se prepararem, gastarem sozinhos essa onda barata de referencialidade, que me colham em fartos frutos no meu perfil no instagram e, se voltarem, não aceito menos do que esses alunos de mestrado ou o que eles mesmo aceitam falando de efemérides melhores, não aceito menos que nenhum outro poliglota decano da minha geração, ou o que lhe dão por seja lá o motivo, o bom de campus pequeno é que todos aqui conhecem meus exemplos. Se colar a curiosidade pergunte a alguém sobre o Tiago York de história, peça adjetivos, e se parecer preciso ainda uma averiguação de, se pá, fatos, pergunte pra ele a frequência em que o seu tempo é gasto, o quão, de inacessível, o deixam em paz.

Aqui nessa merda eu não tenho o direito de inacessibilidade. Falar que eu sou palmiteiro é uma estratégia de manufatura de repulsa. Ninguém me dá nada, então ninguém tem que chegar tirando. O justo pelo justo.

Tô mais puto agora do que diante de injustiças mil vezes maiores, por um momento que a imigração imploda, o executivo se exploda, as coisas todas, essa é minha voz, é o meu psicologismo, reclamo do que quiser; o que mais me manca é a pedra no sapato do personagem em si, nunca enquanto eu vivi sofri esse bullying caricato, nunca fui freak de verdade depois dos quinze, porque era gótico de lápis nos olhos, nem nessa época me isolei sentando numa mesa diferente, eu não tenho meio milímetro de timidez; nunca gastei quinze minutos em uma república masculina, aqui ou em OP, sóbrio ou indecentemente louco de droga, sem ser genericamente um brother, mesmo bicha, vazando só porque a minha vontade prevaleceu, só porque eu valorizo minha onda e conquistei espaço de performance pra a levar até a quebra que eu quiser, caralho, carrego minha masculinidade na bagagem da culpa mas de forma alguma viveria sem ela, meu gênero é explícito, é a mesmice, o conforme, tenho vergonha não, o sepulcro, e eu era gótico ─ tô me repetindo ─, morejei mais que sei lá que Oliver Twist que seja, no cinzento céu londrino do teto do meu quarto, sei lá que patrão proprietário de vidas, sei lá por onde do caminho do vinho aos lábios no cemitério da Saudade, me deixe convalescer, me deixe abraçado ao cadáver de meu gêmeo; adolesci punk, nunca cairia no chão sem descer a porrada até a inconsciência de seja quem for, de onde desponta esse doppelgänger me deturpando, cleptomaníaco coletivo do que resta de individual no espaço que tiro com o corpo? É o Outro, diria algum dos óculos, ditando Hegel de segunda mão, o tesão do Outro e suas transferências, freudianamente, a biopolítica, a geografia do ser-social-racial agindo no espaço-corpo natural, geofísico se quiserem se agarrar às falsas dicotomias, os demais termos, essa besteraiada toda que a nível intelectual faço jus, são os brancos, sempre foram, todos eles, brancos, mesmo os negros. Mas e as minhas, guardadas em mim como ouro nos santos, como pratos nas gavetas, pulsões? E a minha ilusão, entre os autos e baixos duma consciência tapeteada por armas químicas, por uma oleosidade tribal da busca por uma mitologia, nem no mais baixo, nem assim! 

Nem na mais neurótica forma de jornalismo de guerra eu fico parando os caras da Atlética Primaz, no meio dum rock, no meio de sei lá que onda, pra perguntar se algum deles já assistiu Everybody Wants Some, do Linklater, ou se já viram o Discóbolo na Gliptoteca, afirmando a tipificação, reafirmando serem eles mesmos as cópias mais exatas que restaram da estátua helênica-heimliche, pedindo beijinho ─ sendo patético ─, pedindo qualquer coisa que, alheia ao assunto, mesmo se o desejo dissesse querer, as drogas desdiriam em força múltipla; será que assoviaria depois de negada a continuação dessa pinguela de contato físico, nessa simulação hipoteticamente onírica, será que continuaria olhando pra eles, no comprido das mesas paralelas do Múltipla Escolha, como me olha esse cinéfilo de um cast só? Me contentaria eu, também, com um beijo de desenlace ─ é essa a lógica das esmolas nas metrópoles, acho que disse, e dos afetos em espaços academicamente afrocentrados, enfatizo o 'academicamente'.

E já disse que ele também é preto? Pois é, é esse o nó da situação, o mínimo que se espera é vivência, e com isso a noção, ou espero demais? De cara eu já chego à conclusão precipitada que esse-um adora quando um branco vem de papinho de Samuel L. Jackson. Sim, como não, sim, se me isolei foi por isso, se não saio, pra além dos laudos que forjei, é por isso.

E a graça de que eu me falo palmiteiro mas não cometo essa gafes.

Existe uma esquina perigosa em que o pan-africanismo corta a paranoia enquanto os postes piscam como olhos areiados num vento de inverno enquanto, ainda enquanto, dançam as galinhas decapitadas e danço eu, ilusões imagéticas dum evangelismo compulsório, e enquanto durar a bateria do cebrutius-deuisse, ao som de Baco Exu do Blues, dançaremos; por que o meu tempo é tão acessível? É isso que me gasta. Por que não consigo me recusar a atender a súplicas afetivas, como meus secretários não me separam, sem minha interferência, de meus súditos, mesmo que desrespeitem a semiótica da minha ostensiva coroa de cachos, brioches, brioches, além de amizade esperam o quê? Sabem o quanto é, e me é, cara?

Me sinto a porra do Obama, me sinto um Milton Santos sem o prestígio merecido nessa porra, explicando o papel ativo de um intelectual, um Malcolm pra mídia, mereço meu sossego, mereço me respeitar, mereço produzir pra que o racismo que me compõe não me corroa por dentro, e mesmo que não me respeite eu mesmo, mereço que não me copiem, mereço deter os direitos da originalidade de mim pra que eu possa, após meus ritos, depois do expurgo do meu [⁂], eu não preciso desse elo com um passado que me aprisiona nas margens do tanto de dó que eu tenho por mim-criança, mais que um Cristo-Gugu-mulato-de-sol, reconstrução do inexistente, clamo: noli me tangere.

Vai de-retro com essa falta pra onde ela é dívida, já é exatamente o que a formulação do pedido parece sugerir mesmo. Imagina cê ser negro e chegar pra conversar com um outro negro falando com quem ele parece, do nada. Vai se tratar, baitola.

É lógico que é hipérbole, é claro que me alongo terapeuticamente, já parece óbvio que falo das obras sem as colocar na mesa. Mas quantos intelectuaizinhos moram nesse campus, quantos óculos mais óculos que os meus, quantos falares embotados pelos verdadeiros plurais normativos na oralidade tensionada, com os R desretroflexados das cidades grandes, das boinas, duma galera esquisita que chega aqui pagando a vergonha de fumar cachimbo no luau, de suspensórios, que dão moral acrítica pros clássicos, e eu, que apesar do total na cadeira do [⁂], apesar das piadas profundas trocadas com a professora [⁂], não que ela lembre, bebendo vinho no busão pra Cordisburgo, que sou o maior fã da banda do [⁂] ─ embora nossa relação tenha sido embotada pela preferência dele pelo bouzinho clichê do próprio cachimbo, com um cursinho em Harvard, que nunca precisou de dinheiro como eu, na vida, diga-se de passagem, pra bolsa-monitoria ─; tudo sem presunção, tudo sem vontade, enquanto emulava o alcoolismo do meu pai no mesmo snooker que todas essas figuras também se embebedaram, ou foram embebidas nas reflexões que tive delas, madrugadas adentro, do mesmo material que qualquer trabalhador da Vale, virado pras aulas, odiado pela turma...

Contra os brancos caricatos da sapiossexualidade e que pagam pau pra sapiossexualidade como medida da apreciação de si mesmos, eu, que fui pego publicamente trupicando, vomitando, transcendendo réplicas pra toda essa grandessíssima duma biscateira duma bosta é que sou parável: por ser preto; olha só, que fofo, que puto, que próximo do toque, que abissal embolia do gênio. É essa mesma galera que me breca que, depois, vai falar que me conhecia.

O movimento fala tanto ─ aponto o dedo, aponto os dedos e tremo ─, falam tanto em valorizar o corpo negro, a pele da bicha preta, em redistribuir afetos, fingir uma democracia racial no país das paixões mais patuscas, mas minha pauta, ah, se ainda apareço no Coletivo, nem se for pra polemizar em público, nem se for contraprodutivo pra todos, terão de passar por mim, terão de me escurraçar em seus discursos, terão que ligar pro Djonga me dar orelhada, isso quando eu puder, vai ser a de se valorizar o tempo negro, a onda negra, a rachação negra, o foco, a criatividade, [⁂] porque tanto os boys brancos, de quem não espero nada além de que me fodam mais que alegoricamente, quanto as pocs pretas, de quem esperava tudo tudo menos isso, montam feira pra vender a varejo os próprios votos à minha candidatura, financiada pelas grandes construtoras do discurso: uma carreira, diferente das tantas que aceitei nas telas desligadas de celulares, uma que nunca quis e de que não me avisaram, duas, argumento, que popular era outra coisa quando eu queria ser na escola, entre noias adolescentes, achando que a opressão acabaria com festas na minha casa, pagando o sangue-de-boi, três, finalizo, que fui eleito sem secretários a quem ocupar dos fazeres, beijar que crianças, cortar que fitas, derrubar a primeira pá de cimento em que buracos, vereador do quê? Crush com o aval de quem?

Esperei uma epifania vendo esse filme, esperei me encontrar espelhado, esperei uma reflexão mais substanciosa do que tenho feito rotina no primeiro segundo em que acordo até quando os pensamentos ganham cores e formas próprias, mas fui escoltado pelo japonês da Polícia Decepcional: esperava mais dos meus pares, me deixei cegar pelo esquema de corrupção que o racismo embota nas falas anti-racistas, pois espero tanto de cada bicha preta como eu, esperava que tivessem esquemas prontos onde ainda construo esboços, esperava que fossem todas Linn da Quebrada rindo da minha cara comigo, e entendo agora que isso é injusto com todos, esperava pelo menos um auxílio substancial no meu caminho de autognose, é essa a tensão significativa de que sou um homem, homem, efetivo do meu tempo?

Oferecer uma grátis não oferecem.E é isso que eu saio de casa pra fazer. Segredo nenhum.

Eu não consigo escapar da roda-viva mundo-merda de maneira alguma, essa promessa que me fizeram de poder me sentir pelo menos bem, pelo menos um dia, nesse corpo, nessa fome dessa forma, esse vaso, irmãos, ó irmãos na casa do senhor, ó povo de Deus ajoelhado diante ao altíssimo, hallelujah, recebendo a palavra, ô glória, hashesherere halabaracandrias, assentado nessa laje rasa onde lancei como rede minhas raízes e colhi a cada ciclo de duna e chuva os grãos que me alimentam, um por um, fiz de solo a minha vontade sobre o barro; como não fazem jus a essa genialidade de vitrine, essa inacessibilidade aparente, esse chão batido do bazar da minha presença nos lugares, essa cátedra, 'minha negritude não é uma catedral', como não compram as flores de dois minutos olhando pra minha cara e vendo o quanto eu tô exausto de papinho merda, mas não só exausto de painho merda, não só do rolê, só exausto, pra compor antologias das mais interessantes frases que os rouxinóis não conseguiram, ou, por qualquer impossibilidade, cantar pela cortina do meu claustro, enquanto tentava entender o mundo um sintagma por vez? Minha negritude mergulha na carne vermelha do ódio, na carne ardente do tédio, no quanto eu queria sair de casa sem remédios... Brincadeirinha, entendo um pouco dos rudimentos da neurologia, os remédios salvaram a minha vida.

Não me sinto na senda de tentar transcrever o laudo puído da minha sexualidade, não sei também se te interessaria, ou se soma algo, nada escrito aqui chega perto de ser tão impudico quanto, não sei mais de nada, mas resumo o que importa: vi muito pornô, li muito pornô, li Bataille virgem e isso deve ter algo a ver, li mais coisas piores. Só não aceito essa malemolência; aceito o sexo em toda a sua experiência corporal e simbólica, só, os nervos da pele, os nervos do crânio, o estímulo, as relações fodidas de poder entre chutes e chicotes, quero a perpétua recorrência dos mesmos machinhos merdas em negação no mictório da minha escola, e não é pedir demais, porque essa é a realidade material da heterossexualidade brasileira, eu sei. Não me isolam mais por louco, não me tiram essa contestação numérica me convencendo em erro da inacurácia de mim, eu sei, eu vi, eu estudei, é essa a minha parafilia. Não tenho afeto, não acho válido que me cobrem o que não tenho agora que descubro que não posso cobrar nada de ninguém. Não tenho afetuosidade pra compor qualquer coisa e nem quero, não quero companheirismo sexual quando defino como meta de relacionamento um pau-amigo, enquanto a etimologia latina remonta a amor eu ressignifico como não ter que saber, eu não quero saber, não ter que conversar, não ter que chegar a semana que vem e a pessoa que me parou na semana passada me parar de novo pra falar que a qualquer-coisa que eu falei pra ela foi a sementinha de baobá de sei lá que jornada, não quero saber, eu não quero conversar, quero não-conexão, melosidade me brocha, quero a beleza das magazines e não me sinto mais vazio que nenhum energúmeno da minha idade, bacharéis sem OAB advocando por relações mais próximas, que ficam chorando baixinho porque os corpos são corpos, sem perceber que essa mesquinharia de juntar os interesses com as vidas é manutenção dum cristianismo em decadência; sei em mim que a efetividade está onde a encontro, não transo com quem sinto ternura, está aí, não transo, não transo, não transo, e isso não me tolhe em nada a leitura de qualquer romance ou de reconhecer na cultura de massas os ecos da leitura romântica de Romeo & Juliet.

Não falei que eu saí de casa caçando tirar uma onda? Relaxar, dançar, pirar o cabeção?

Se isso é disforia espero que me digam de qual gênero pra que eu prepare os rudimentos da sua resenha, cada escrito prescreve por si a sua bibliografia; que é dismorfia corporal eu sei há tempos. Mas pouco me importa. vale dizer agora, de avental, hidratando o cabelo, cosplay de dona Florinda, que se lutei contra o machismo foi pra que fosse meu, [⁂]. Vale dizer que meus traumas são tão funcionais que se sublimam sozinhos, mas que é o mundo que não me funciona em favor?

Não tô sozinho, não tô carente, não 'pego só branco', não me sinto arrastado por essas badaladas de bosta, se isso é tóxico me vê cinco, passei o rock todo procurando um corre de bala, meu corpo é meu, apesar das especificidades do contato dele com o mundo não serem, não seriam, nunca esperei por isso, sorte dos que vierem no futuro mas tô tão tranquilo no meu corre que sequer os invejo, quando eu tiver a idade da Laerte reverei minha contemporaneidade, até então me domo à minha vantagem; dominação atuada me brocha mais ainda, se não fiz teatro é porque sabia que era bicha e não fui pego, em três atos me fiz manifesto duma luta que me escapa à cama-mesa-e-banho, não quero safe-word, quero um masoquismo mais real no físico que no pensamento.

Quero por algumas horas fingir com a próstata que creio no mesmo mito da masculinidade que os militares. É pedir demais? E nem isso eu queria esse dia. Mas pegaram no meu braço. 

Eis-me no rolê, numa espécie de hei-de-ser-conquistado por trivialidades de porta de livraria de shopping, pelas citações erradas, pelo personagem errado, pelos gestos errados nos jogos mímicos, simultaneamente tido o guardião do mais obscuro da Alphonsus de Guimarãens e a bunda mais ritmada nos rocks das repúblicas de sapatões, que não me gastam, que não me entendem mas nem querem, já gastei tardes catalogando para mim os periódicos desorganizados daquela salinha à esquerda da escada, sem bolsa, lógico, não-excludentemente produzindo arte, objetificando sem imputabilidade alguma os corpos-sujeitos. Não se tem aí graça o suficiente?

Não vejo positividade, não vejo também incongruência profunda; se isso for homofobia internalizada, se isso for, cogito até, racismo internalizado, que seja, e que seja ainda, assumo isso também. Se faço disso substância libidinal é porque preciso tão urgentemente que Eros vença Tânatos algumas horas por dia, assumo precisar desses braços pra dormir de conchinha com as pelúcias gigantes das minhas monstruosidades. Ou nem isso.

Verdade é que eu quero assumir pecados que não pequei.Quem mais assumiria?


20 Jun - Il lupo perde il pelo ma non il vizio

Esses putos acham que leram mais Fanon que eu, esse mês, pelo menos? Como se fosse culpa minha, me imagino nesse lugar de traidor de diferentes bandeiras e classes, entre lufadas e mais lufadas de vento, os GGGG+ me transformarão em gatilho, então aviso de-prévio que não defendo o masculino nem por tortura, nem pra tirar transa, naí se encontra a chave da minha virgindade, conheço a fundo o masculino, desprezo suas revindicações sejam quais forem, não importa se for a mim, e não falo do feminino porque não consigo me identificar de todo, só amizade, o que derrete o gênero e o corpo enquanto coisa-em-si, ou só superfície, só como par-romântico dos Caios Castros da vida, nas novelas de morte pelos olhos, nas quantas mil vezes não me vi representado nos casais da televisão; o Coletivo, therefore maiusculado, acho, não me conhece, e se chegar a tanto só me conhecerá pela polêmica de, sabendo e calculando, recusar as cantadas afrocentradas dos seus viados que não me oferecem senão a certeza de ser tipificado , então nos vãos dos paralelepípedos da perseguição silenciosa permito que cresça daninha minha denúncia de que cuidem primeiro dos brancos fraudadores de cotas antes do meu discurso. Minto, os dois, os brancos e o meu discurso, ao mesmo tempo, na minha cama, nos cuidem, seria um choque de titãs. Não consigo me levar a sério hoje, só isso.

Exagero demais nessa questão de estética norteada ao nórdico, essa é uma repetição que não se confirma como regra, só é notada, notação, ainda espero um príncipe retinto mais escuro que seu próprio alazão, ou hipocampo atlântico, mas não aceito ser um Quixote de cavalarias pós-coloniais, o argumento que faço é que, apesar de imoral como sou, não misturo o pão à carne, não me ganham assim, não tenho mais dezesseis anos ouvindo How Soon Is Now esperando que me amem quando essa palavra, no fundo-fundo, fundo-no-fundo, quase etimologicamente, é em mim eufemismo pra foder. E não choro por isso. Não me faz falta a terapia: no por isso.

Por fim, chegando às vias de fato, chegando essa outra pessoa ─ o objeto Austerizado ─ às portas trancadas do meu interesse pela sua vida, se sentirá objeto ─ de fato ─, a alguns será uma nova sensação, aos outros, parecidos comigo ─ por bonitos ─, não será tão divertido, não quero me culpar depois por reciclar os mitos edênicos. Se não me deparei com a questão indígena é porque me li em Iracema como em Clara dos Anjos, mas isso é passado, a monogamia não é mais prisão de nenhuma personagem brasileira que compartilhe da mesma tara que eu. Ou é isso que se pensa olhando de fora de nós.

Na entrada de ontem fiz meu corpo ser corpo-político em outra via, no negativo, me vi de novo no meio-fio, naquelas barricadas no meio de interestaduais que passam nas metrópoles enquanto uma galera corre com as crianças no colo e pula. Aqueles meios de rodovias em que a vida se transmuta.

Minha cabeça não desestaciona de Dear White People. Me consome a sensação de faltar um pino pra esse strike, não pela ironia de pensar falar 'é mesmo, eu que fiz esse filme' ─ que outra forma de fazer sentido? ─, mas por ser tão junto no catálogo, com certeza no mesmo corredor de DVDs, se existissem ainda locadoras, de Black Earth Rising... Black Earth Rising.

Ó, longe da perfeição, problemas muitos, próxima duma ideia minha de mim, e a madrugada que ganhei no quarto da minha mãe, sem droga alguma além de umas latas de cerveja, chorando como criança, eu mesmo, sem terapeuta; tá aí o gelo a ser quebrado, tá aí uma tipificação complexa sobre identidade, tão próximo e tão profundo. Tá aí a porra duma propriedade da Netflix, tá aí um quebra-gelo.

Mas o moço não me conhecia, conflui pra que não o deixasse conhecer o fato de que chegou em mim com uma doideira, o moço não podia saber o quão em crise esteve minha negritude, minha mulatisse, lendo Lima. Mas não mais. Mas não adolescente e coitadinha. Quantas vezes parei, paro, e tão estático e estatelado tô eu que me meto em círculos contando essas coisas que se emendam nesse não-relato, assim como confluiu para que não o relatasse também.

Conflui não termos um cinema mainstream-negro como os chineses e as pocs, sem generalizações, só um fato geracional. Nossas dissoluções não são coisas que hitam no twitter.

Se falei em termos de culpa, se foi essa a mesa-de-luz em que transpus, corrigindo algumas linhas, remedindo os remendos, em seus erros de percepção ─ ou o que eu penso como sendo, preemptivamente ─ , penso, não me conhece, não me entende, mas me viu como um belo preto de óculos, por que não, se é, sobre a micrométrica melanina, sobre o duplo arco que parte dos ossos nasais a ambas abas da face, orelhas por onde ouço essa suprema verdade das aparências, o que sou! 

Mesmo assim, no xis-do-xis desse palco, grito: le beau nègre vos emmerde, collègue! Por que a futilidade dos outros é mais válida que a minha? Pra além dos temas, pra além do subtexto e do simbolismo, pra além de todos os subterfúgios, essa série, da Netflix, de eventos cotidianos em que tateio a delicadeza das indiscrições, me reconectou com meu corpo, corro como desde então. Às tardes que eu lembro, corro como a protagonista na pista de Passagem, conforto ou confronto o couro da pele de dentro pra fora e me sinto.

Mas o colega não me conhecia ─ repito pela última vez ─ internalizo esse mantra em-força de entender como eu me apresento, como esses encontros são a consequência previsível de coisas que me escapam. Ao pensarem que isso cola, de se acharem galantes ao me ganhar ─ supostamente ─ com falsas similitudes, com conversinha de quem tá lendo Bilac ainda, cheguei, chegaste, vinhas fatigado e triste, e triste e fatigado eu vinha, venho, irei... Não cumprimentem, irmãos, minha máscara, meu fado funcional, a capacidade gladiadora que tive de não me falharem com a educação que falhou com todos ao meu redor, de não me marginalizarem ao irreversível, de não perceberem o quanto me fizeram um outro do mundo. Não me comam a inércia com meandros de medalhão, por favor.

Não que eu seja o único leitor poliglota do ICHS, ou colecione o pesado colar de contas com mais lidas cravadas em nome: tenho asco de colecionismos, se sei o que sei é pela instrumentalidade, foi pra poder descansar sem ralhos depois ─ pra vadiar depois ─ enquanto trabalhavam, enquanto tinham de estudar o que suguei como se disso dependesse toda minha sede. Nunca tomei aula, fiz Francês I e achei o [professor] um fascistinha, nunca mais cometo o erro, fiz Inglês IV com uma presença que não era minha, uma voz que era quase nativa porque fazia ponte NY-BH sem que eu levasse placa alguma ao aeroporto, mas encontrou carona até os elogios do [⁂] e do [⁂³], que fez comigo a cadeira, que se admirou, como os outros filhos da aviação se admiram, quando volto pra SP, com esses títulos discretos, todos os talentos; não que não existisse um forte sotaque, o enferrujamento de nunca antes ter colocado carga nessa caneta-tinteiro, não que qualquer gramática descritiva não se defendesse dos erros que essa voz se deixe cometer, por pura preguiça, mas porque nunca estudei, nunca quis, nunca contei com essa necessidade, e nem se eu quisesse mesmo teria dinheiro prum bom curso, me fiz um Gregoróvitch dessa pátria-de-classe de que tanto falam os trotskistas.

Conheci um pouco das tretas dele, volto pro [⁂³]. Figura trágica, mesmo. Antes de ir embora pra UFMG, não me surpreendi com o suicídio, poderia o ter conhecido mais se tivesse aceitado seus convites pra cafés na casa que dividia com a [⁂], podia saber mais do que sei. Mas não me arrependo: imagina só, um desses convites foi por meio dum bilhete em latim que nunca tive ganas de traduzir e nem sei se guardei. Sei que num do-nada ele me passou o papel e num quase-sem-nada percebi a língua latina e não quis me fazer ler. Isso onde a linha-do-trem corta o Rosário.

Sei que ele morreu sem entender que o óculos era minha máscara orgiástica, minha tentativa de entrar num culto do qual só sabia o lugar e a senha ─ não sei se tão descoberto quanto desconfortável, agora decano. Ainda hoje o óculos-reserva arranha a minha visão com seus riscos, vou me deixando ficar, vou deixando projetarem o que projetam nos seus remendos, não volto pra OP pra pegar o outro tão cedo.

Não que eu me creia a caralha da caveira-de-cristal, não, nem de longe, ainda não entendi o que queria, ainda não li o que tenho classificado como o mínimo, a universidade não tira o pé dos meus momentos exegéticos de êxtase, sem falar do gozo, da arte ou do propriamente dito, sendo esse segundo eu mesmo que me privo. Não tô reclamando desse trabalho.

Não vou aqui assinar essa carta e endereçar ao Sr. Mundo de Hoje, residente e síndico reeleito no ed. Because-The-Internet na av. Pós-Modernidade, Nova Nonada, MG, nesse país que perplexa as tentativas de compreensão pós-coloniais, porque isso é coisa de quem não sabe desembocar um causo, falta pra essa gente leitura do cânone alemão e das tirinhas da Mafalda; mudo o tom, é de desgaste que morrem as revoluções, e se cada vez que eu fosse comparado com algum personagem ficcional em conversas com quem não me conhece, nó, treta, já que não me deixo conhecer. Se cada vez eu pirasse assim, aloka, não ia ter mais nem esse fino fio de sanidade. Se ganhasse um real a cada vez eu podia passar semanas no Scotch Bar que, fazendo três anos que já tô aqui, ainda nunca fui.

Acho que às vezes as coisas precisam assumir essa forma arquetípica, o 'Dear White People' sendo a síntese de todas as vezes, ontem sendo a síntese de todos os desconfortos com isso, com a fachada que é referência recorrente no meu ímpeto monográfico.

Se meio que mencionei Stalin e trago de volta, e se não mencionei peço perdão, é pela utilidade biográfica, lógico, tudo aqui deveria ter, enquanto no realismo dos finais de semana sem RU eu como miojo com bacon — se rolar o bacon, na maioria das vezes não — no simbolismo das ideias corto as aparas de insira-aqui-um-corte-caro-de-carne pros ratos: virar ateu, durante a crisma, foi consequência direta de uma necessidade visceral de ortodoxia, se o modo de produção não tivesse quebrado os catequistas et cetera e tal, apesar das não leituras, a ortodoxia marxista et cetera e tal, o escape incorpóreo do pós-estruturalismo er cetera e tal, há mais o que argumentar além de fazer valer esse vintênio de privações?

Me digo: cê devia ter sido poeta, devia mesmo, e olhando os farrapos do meu corpo me respondo: e fui, não tá na cara? Foi essa versão que vingou, um-quarto de mim, menos que os sobreviventes da peste, e é o que é, não há nada a ser feito, tô ilhado mesmo, o povo é de uma burrice; três quartos se avermelham do sangue da terra, fervilhado, revolvido pelo coração másculo do sol, Césaire, ó, Césaire, minha tardia mentoria amórfica, e o preto, condensado como nata nos outros três quartos, compõe bandeira, anarco, antifa, Bahia, em sonho, Exu! É novamente é pelo atlântico que buscarei refúgio, que remontarei um passado por trás do fórceps? Será que no veio mais vil de mim aponto uma culpa, em mim, entre tantos fatores? Abraçaria os braços que me soltaram? Me sinto no direito de coletivizar minhas dores agora que começo a entender o que de coletivo se cola a elas? E se eu dizer 'quase nada' eu avanço a causa, apontando falhas, ou atraso ela, subtraindo valor pela crítica?

Piro mais de cansaço: quando me publicar e me lerem e blablablá, terão acesso ao que senão que só a uma obra? Escrevo aqui na esperança de usar de alguma maneira, publicar num jornal: não me peçam fotos, não farei M&G, não assino nada, se me querem bem me mandem boas substâncias na minha caixa postal, lerei no remetente o nome de uma pessoa de classe e que respeita o que eu fiz. Caguei se acharem ruim, é bom que filtra, é bom porque no fim eu não caio nessa de que se não questionam sobre como o mesmo Mick Jagger da guitarra em Heaven pode ser aquele que deu moral pra Luciana Gimenes — e foi no pelo —, quando eu der moral pra uma beleza qualquer, padrão ou não-padrão na terra do Sol. E ser reduzido aos meus lábios: mas não quando falam.

De Roda Viva não quero nem o branco nos olhos, me dá preguiça dissertar sobre isso, mas tem muita pergunta ruim pra um programa que se tira como sério, é muita imbecilidade que se deixa fazer de jornalismo, coitados daqueles que citei até agora como ruins, Roda Viva é pior, é um guilt-pleasure, um tipo de meme, o que não tem pra não se identificar com a última frase de apresentação do convidado, Mano Brown em 90, dizendo que ele 'classifica o povo brasileiro como pacífico, mas já afirmou que pegaria em armas para fazer uma revolução', se não fosse ele só o Rosa pra cunhar uma dessas, e passa batido. O Renato Lombardi é uma mistura de Rabicó com Visconde de Sabugosa, sempre senti essa tensão erótica nas histórias do Lobato, essa é minha fanfic oficial, ele é o bebê que tiveram no sítio da própria brasilidade, irmão do Freyre, e quando ele fala que o Brown tem uma legião que o segue, a quem deve exemplo, pensar no que exemplo significa em uma quebrada, pensar em o que tudo significa em uma quebrada, é de babar a fofura do intelectual moralista apolíneo, cu preso, e a recitação e o diálogo que tem depois disso me faz pensar nas discussões entre duas versões concretas minhas, exigindo os ouvidos de um outro eu que é escrivão de tudo e costura a minha obra, cansado demais de tudo isso, sem saber ainda o que fazer com o Lima. Esperando os períodos fecharem. O José Neumanne é o personagem de sitcom por excelência, passando uma vergonha da porra de episódio em episódio sem redenção nenhuma, e o cringe nessa, minha Senhora, inigualável, 'você é ligado em algum poeta?' A audácia dum filhodaputa. A resposta era pra ser 'eu'. Recomendo o canal dele — do Zé — no Youtube pra assistir mudo num domingo de desesperança. Acho me identifico com o Paulo Lins um pouco, a poc podia ter perguntado se eu já assisti Roda Viva e me atingir mais próximo, acho que sou um pouco do Brown nessa entrevista, no mundo, e que sou o Brown na quebrada quando estou na academia, ou o Beiramar, outro preto de óculos.

Não sou uma figura tão esfíngia no rolê, gastar um tempo deitado na minha personalidade é perceber as reações do Paulo às perguntas dos colegas sem noção e as respostas. Esse trampo aduaneiro é árduo demais. O problema da moradia aprendi brandamente, via Virginia Woolf, via minha mãe e todos os problemas que ela teve até o divórcio, se me identifico com a situação dos outros é mais um viés estético, enfim, não sei mais me explicar; queria ter tempo pra fazer um trabalho de catalogação do mais podre desse programa, em todos os anos.

Falando em quebrada, me pegam as leituras que terão de mim na favela, que piração eu seria e o diálogo com essa galera, o Brown falando que lê pouco e é desinformado das coisas, eu falando que leio pra caralho e continuo desinformado das coisas, que informação pode ser essa? Que sapiência é essa que não podemos pedir encomendada nem em coaching do Karnal? Tô juntando o que quero falar do Lima num artigo aí, tanto por falta de tempo quanto de fôlego, mas sinto que sou o Milton Santos em 97 tendo que explicar pro Istvan Jancso, da forma mais calma possível, que eu também li Hegel, Marx, Lacan e Heidegger e sou fluente nesses chavões, mas que tô aqui nessa merda de planeta pra fazer as coisas úteis e rasgar dessas coisas o que presta, girar 360º no meio desses absolutos herdeiros do bacharelismo branco, sendo eu, Milton, e ocê, [⁂], acho, herdeiros dum bacharelismo mulato, como Isaías eternamente presos na impossibilidade de sublimação, não existe pra mim, nem num loft na paulista pintando quadros de metros por metros, algo que corte a genética simbólica de buscar o menino cabeçudo que eu era e tudo o que eu tive que fazer pra ser levado a sério enquanto outros não precisavam fazer nada, não há beleza nisso, não há superação, só há o 'há', só o 'que seja', um Maktub retroativo, uma certa obrigatoriedade de se fazer útil a não sei o quê.

E a real é que bacharelismo é bacharelismo, independente do orgulho-lá-em-casa como índice. As cotas não foram tanto uma oportunidade quanto uma arapuca, vou vendo. Eu, que mesmo sem usar, tenho o pé no abraço da mandíbula.

Comecei minha tutoria esperando abordar de forma profunda as questões sociais na literatura: reclamaram. Com medo de perder os 'temas de verdade' do fazer literário como rimas e imbecilidades tais; fiquei puto, de leve, mas vi a oportunidade de pontuar que não existe o discurso-literário sem a primeira parte dessa palavra composta, e o discurso se destila do social. Que toda expressão estética sai disso.

Como exercício propus uma leitura, mais técnica possível, de um texto brasileiro, e nada imparcial foi o exemplo, o mais proposital que tinha encontrado, levei Conceição Evaristo, Olhos d’Água, gastando hora em todos os marcadores que coletivizavam essa mãe, esse ser-sem-nome, esse arquétipo positivo/negativo de resistência cultural, esse ser-papel-social, e fui correndo a passos curtos por todas as referencialidades da cultura negra no Brasil, pros próprios pretos da roda, como se esses símbolos formassem um catálogo estático e isso fosse um close-reading. É lógico, a leitura foi pessimista, coitada da mãe, diziam, parece com várias por aí, diziam, e se todos tivessem lido Carolina, calouros ainda, passariam por essa imagem; o tom parecia de quebra, de liberdade pras próximas gerações, de empoderamento feminino, até eu chegar em mãe tal-como em Oxum. Não disse que uma leitura dos arquétipos pelos orixás transforma, mesmo que não em todo, o sofrimento da marginalidade da mãe negra sozinha, como uma classe pra análise sociológica, na posição máxima de defesa da própria cultura, do próprio povo ─ que são seus filhos ─, da própria carne: que por pintar com esses pincéis o duplo se abre pra uma classe pra análise cultural de dentro do seio da própria cultura. Aí eles entenderam que o texto não era uma crítica, embora haja esse teor, é na verdade uma homenagem, uma oferenda, é o reconhecimento de si pra além do ocidente, é lindo.

Ter lido Conceição e ter tido a chance de entender as sutilezas, os mimos, os sabores de uma cultura preta que se entende me fez um leitor profundamente triste de Carolina de Jesus: foi a literatura branca que tirou ela da favela. Mesmo antes de sair já estava fora. Foi Tejo, foi Arcádia, foi Paris, não pra dizer que a miséria do povo brasileiro seja melhor matéria literária ou que nossas merdas nas ruas do vinte cheiram melhor que a deles no dezenove, não romantizando mais uma vez o futum de vidas desperdiçadas nas calçadas, calma é necessária nesse tropos tropical; mas eu conheço esse desprivamento das privações que aponta pra pontes de pedra, eu conheço essa necessidade de passaporte pra um mundo de neve e luzes de Natal. Eu entendo a neurose mais profunda de Isaías que destrói qualquer possibilidade de esquecimento de sua condição. Não não-obstante, mas ao propósito disso, minhas memórias e rancores me levam e trazem de Nietzsche, me colocam na esteira ainda rolante a crítica ao pensamento ocidental pós-socrático, toda essa merda pendurada nos lábios do rabo do Logos, todas essas cavernosas saunas onde os patrícios batem punheta pras sombras de seus congêneres em mímese masculina, pra depois, ao sol, nessa situação meio capenga onde cultura virou società, o cristianismo e tudo de pior...

Quando mesmo colheram esses frutos? Aí depois o século vinte todo dos brancos buscando a reinvenção do berço da Europa, depois de tanta antropologia denominando tribal o que agora eles acham que é trip boa, colando em Capitólio, raves mais ravenosas que contos do Poe, sob um quê de misticismo carente, de orientalismos exóticos, como o budismo, que é chique; como os catolicismos não ortodoxos, essas espadas que não enferrujam, essas plantas com nomes de santos, metendo as mãos pelas mãos em toques tenores pelas lojas maçônicas. Nos dando essa qualquer-meia-hora pra nos virarmos e falarmos o que tem que ser dito. E a gente fala. E numa boa.

E tudo que eu queria era conseguir encaixar meu ser-papel-social nesse ser-cultura ─ nesse duplo azar e sorte, duplo coisa que fizeram a mim e herança do que nasci sendo ─ ao dizer, apesar de ter medo de ser de certa forma brasilianista, querendo usar uma estética de retorno só pra fazer metáforas, que me vejo Exu. Sou menino-Exu, como não Exu?



óculos¹: coisa engraçada, passei meses, nessa época, usando e saindo com uns óculos amarrados com fita isolante porque muito doido de incontrolavelmente bêbado eu perdi meus óculos mais recentesos reserva só se tornam reserva comigo depois de quebrados. Perdi numa ─ e por isso não quis buscar, ao que logo veio a sumir ─ república de Ouro Preto.


[⁂²] é um professor do DELET. Conhecido por usar boinas sem dia-de-folga e fazer disso um traço-de-personalidade.


[⁂³] é talvez importante explicitar que esse cara não é nenhuma outra pessoa previamente redatada. Tangenciamos uma amizade por uns tempos, via amigos. Ele era alcoólatra, um ponto em comum, e nos trombávamos nas madrugadas marianenses. Mas ele não ironicamente tinha uma paixão por Estudos Clássicos ─ carregava, quase como Bíblia, um tomo da latinĭtas ─, o que não é nada a minha vibe e tudo o que eu posso dizer é que não cola comigo. Daí, talvez, o porquê do bilhetinho em latim. Sim, foi um flerte. Pra além disso ele era rico de uma maneira que eu só comecei a entender que existia quando na universidade. Fingi que não era comigo, o que foi difícil, porque ele sabia que eu sabia latim instrumental porque é o tipo de fofoca que é fogo de gramado. Não muito tempo depois disso ele transferiu pra UFMG, onde, sem dúvidas, ser classicista-empolgado e manequim de suéteres caros passa mais batido. A notícia da morte também foi cobra-de-fogo voltando pra mim. Vários 'cê lembra do [carinha]' encontrando meu olhar estatelado de 'será se eu conto'. Não tive intimidade nenhuma com ele nesse nível ─ os doentes mentais, grupo do qual faço parte, e os suicidas reincidentes andavam sempre em trupe, mas ele não nos acompanhava ─, mas não me surpreendeu em nada. Apesar do convite, um olhar açucarado e outras coisas ─ como, por exemplo, me parar um dia no meio da rua Direita pra conversar 100% em inglês comigo, imersão realness, porque távamos fazendo uma cadeira disso juntos, elogiando minha fluência, falando que admirava minha atitude de 'nem aí com as coisas' [e eu altíssimo de maconha e quem sabe já cachaça, EXT. - DIA] ─, apesar de sinais menos que neutros, ele não tanto quanto mudava de assunto quando as conversas eram sobre sexualidade. E as conversas eram muito sobre sexualidade em 2019. Chegaram a mim, queimando baixinho, papos sobre a suspeita de problemas com o pai. É feio especular: disse a eles; digo a mim. Mas por vezes a tristeza das coisas tem que ser contextualizada. Infelizmente.


2019/2023
junho


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