Paradiso Shopping Sul

'Eu sou a noite
Sem destino
Esbofeteada pelo vento
Nesta selva branca'
Carlos de Assumpção

Dantas queria mentir mas não conseguia. Dantas queria mentir principalmente porque não conseguia. Nessa brecha, nessa racha de chance, quem sabe; tentava mal, dava pistas, deixava pra trás. E eles tavam colhendo. Ele tava deixando acumularem. Demitido ele já tava. Isso ele sabia.

'O meu envolvimento com isso foi tirado de contexto,' foi o que de mais apropriado ele achou pra dizer, recolhendo o pouco que sobrou dele mesmo num cruzar de braços. Mais que isso, nada. Não tiravam nada dele a mais. Mas aí a sensação. Um frio na barriga. O cansaço em forma de arrepio desabando sobre ele como água, escorrendo dos ombros pra baixo em calor, igual um banho mal tomado.

A cadeira tava suada. Ele deslizava quase nada pra fora dela, exigindo ajustes. A sala, ao contrário do que é comum nos filmes de detetive, tava iluminada. Super-iluminada, inclusive. Opressivamente. Uma só lâmpada LED da cor da fissura atômica flutuava no meio, no centro-medido, milimétrico, da sala, num soquete sem disco. Dardejava luz, tinha dela feita as suas pétalas. Flechava, tamanhos os raios. A mesa entre eles diretamente abaixo disso. Todo o branco do mundo, todas as sombras como que fugindo em radiais, quem não soubesse o que eram linhas retas podia ser apresentado a essas e saberia.

Os objetos se inclinavam em direção às paredes e morriam nas quatro arestas no chão, um horizonte-de-eventos acinzentado. Todas as coisas como se planejando fugas, era o que parecia. Dantas também, Dantas pior, já que tinha que fingir que não. Fingia mal. Bandeirava pra porta. Olhava pra ela no despontar de qualquer ruído, como se o som significasse abertura e a abertura significasse nada disso ter acontecido. Se inclinava quase que imperceptivelmente.

Ou pra janela, quando trocava o peso, pro quadrado de negrura fosca que dava pro nada absoluto dum céu sem lua ou estrelas. Nada mais que uma cartolina de escola, nada além de um buraco de desenho animado.

Uma esfera viva embora vazia, só perímetros, órbitas e pontilhados. Aleluias, coisa dessa época do ano. Uma quantidade indecente delas, circundando, fazendo de vivos corpos um corpo-de-luz. A janela, daí. Tanajuras também, das pequenas, das grandes e avermelhadas, agora que reparou. Bruxas, mariposas na verdade, de olhos nas asas. Uma legião orbitando e indo de encontro e voando como se a seguissem, a lâmpada, uma dimensão a mais da que ele podia interpretar.

Uma mesinha dessas de faculdade segurava um desktop à esquerda dele, à direita de quem o entrevistasse. Já era a segunda entrevistadora da noite. Semivisível ─ pois num monitor com antirreflexo, prostrado sobre a caixa do computador ─ o mosaico dos tapes das câmeras de segurança: uma repetição, duas. Três repetições da mesma cena em todos os retângulos, lugares, ângulos, partes. Quatro. Cinco vezes mostrado o acontecido, o problema, como mais de um dos que vieram colocaram como sendo. E ele sem saber o que dizer ou que provar.

Passaram um tempo nisso. No quinto ou sexto loop ele disse o que disse e foi quando perdeu. Tava todo aberto, tava de pestanas queimadas há tempos. Topado, ainda, Dantas cede. Daquele jeito de quem acha que uma verdade pode dissuadir outra verdade. Existe toda uma emoção por trás de quem acha que sabe engambelar investigadores e burocratas, e, pro extremo azar de Dantas, isso se pode ter dito, Bia era os dois. E Dantas, emocionado, floreando: 'mas já prenderam o Vigia'.

Ela se fez rabiscar alguma coisa na prancheta, 'ele quer passar essa pro treinamento padrão, quer culpar o RH, quer "estruturalizar"'. Mas não precisava, tava tudo em tape, ele já tinha assinado, todo som era dela. Vídeo também, tava no que ele cedia, e a câmera estrategicamente por trás da janela, por fora do prédio, apontada pra dentro. Mesmo assim, quando ele falava, ela rabiscava. Era interessante, até. Um métis que ela desenvolveu.

Era interessante porque, quando ele parava de falar, ela podia dar um delayzinho de um ou nem-isso de segundo e levantar o olhar pra ele, levantar o olhar como que perguntando, sem perguntar 'e aí, eu boto um ponto final ou um ponto-e-vírgula?' Meio que isso. Como se fosse o trabalho dela, como se o trabalho dela fosse só essa parte mecânica e chauvinista de secretariar o heroísmo dele, o desmedido do que ele era responsável por esclarecer. Ele no comando, ela na passividade de dar satisfações. Precisando dele. Quase como se pudessem se salvar, ambos.

Esse tipo de cara sonha úmido com secretárias, tá bem estabelecido. Bia se punha nesse papel ─ tirava até certo flare desse fingimento, principalmente no tenso dessa situação ─ tinha pra si que era um bônus da experiência.

Ela ia fuder com ele. Oclinhos e tudo ─ lentes fotossensíveis, o brilho não era nada pra ela ─ ela ia desgraçar com ele igual ela já tinha feito com o Vigia. O brilho era menos que merda pra ela e o cara suava. O cara de testa tensa, visão perturbada, cegueira branca, azul. Ela nada. Ela ia entregar ele na mão da justiça, palmas-cheias.

Então entra Eloá, de portentoso porte, seu brilho em halo celenterado a vestindo como roupagem, refulgente, fulgurosa, um puta tamanho de mulher: imperiosa como só ela.

Entra séria como quem cumpre. Entra com já na mão os termos, adiantando. Ele ia rodar, explicou, só podia escolher por quantas voltas.

Desmentiu, desmediu palavras. Que já era, se é que ele não sabia. Que ele tinha instruído o cara. Que tinham testemunhas. Quando ele saiu ─ sem polícia, já numa melhor que o subordinado ─ Bia se sentiu limpa, sem culpa nenhuma, lisa, de-luz, flutuando em suas sedas, uma calça, um tee quase que folgado demais mais só por charme. Ele ia levar a bucha toda. Ia levar uma grana também, mas faz parte.

E em torno da Eloá por três vezes girou fulguroso o bater de asas da luz e dos bichos, o contraste como uma força a mais, elevados no seio da própria cor tingida.


[CONFIDENCIAL] RELATÓRIO DE INVESTIGAÇÃO INTERNA, PARADISO SHOPPING SUL: CASO PIREU® LTDA MODA URBANA FEMININA, MASCULINA, CASA E BELEZA, TÉRREO 3-33, EM ACORDÂNCIA COM O DECRETO Nº 8420/2015 PARA A APRECIAÇÃO DO COMITÊ DE COMPLIANCE DO GRUPO DEVSTATE ROYAL SHOPPINGS BRASIL S.A., BARRA DA TIJUCA, RJ

[...] Ao que, em colaboração irrestrita, a Pireu LTDA efetuou o desligamento imediato do autuado e, conseguinte, dos responsáveis, apresentada uma versão inicial das provas da presente investigação. Coadjuvamos estratégias locais de enriquecimento e diversificação da equipe da loja em questão (Propiciando/possibilitando um ambiente plural que viabiliza dar voz aos agentes/colaboradores oportunizando/fomentando/suscitando a participação de grupos minoritários, articulando, impulsionando e instigando, conforme elaborado nos parágrafos anteriores, a total e plena convivência dos frequentes do centro de compras; dentro do que nos orienta a L7716 de 5 de Janeiro de 1989.). Em minuta a ser elaborada por nossa equipe jurídica, tais comprometimentos serão assegurados de forma a evitar a dissolução da parceria entre as empresas nesse esforço conjunto. Podemos, no entanto, assegurar bona fide de ambas partes. Análises de mercado indicam que é de total interesse que nos posicionemos enquanto instituições antirracistas e, é imprescindível, que avancemos de forma a nos alinharmos com tais expectativas.

É de interesse emergencial adiantar-mo-nos às alegações de 'complacência' e 'morosidade' para com o caso. Já encaminhamos em cópia, mediante NDAs, o presente relatório à equipe de RP, Imagem & Mídia da nossa franquia, à qual orienta-se a contratação de três (3) copys e (2) designers afrodescendentes e/ou mestiços para a composição da nova equipe (a serem recrutados do pool de currículos e media kits recusados no nosso banco-de-dados, de modo que uma abertura de vagas-afirmativas em timing tão inoportuno não levante conjecturas), a serem responsáveis por mitigar a percepção negativa desse demográfico com relação a ambas as marcas no longo prazo. Asseguramos confidencialidade total dos nossos esforços e assessoramos a Pireu LTDA que atue de semelhante maneira com relação às suas medidas paliativas.

Assessorando esse processo, a Paradiso Shopping Sul traz à sua equipe sua nova supervisora Eloá Odùduwà Cristina, Mestra em Relações Raciais pela PUC, à qual devemos todos os avanços pontuais na reversão dessa crise de imagem (a ser bonificada conforme). Representando, com isso, os valores, cremos, de todo o Grupo Devstate Royal Shoppings Brasil S.A. e seu holder de nome homônimo com sede em Boulogne-Billancourt.

Creio ser importante concluir dando segunda-luz à questão mais delicada de todo o processo: quanto ao retraimento que fomos garantidos primeiramente pela equipe de perícia da Polícia Civil (supra, pp. 26). Como já elaborado, não obtivemos retorno substancial e, por se tratar de matéria sub rosa, não é de benefício que insistamos explicitamente no abafamento do que venha a ser revelado. É conjecturado por Eloá que a pressão popular é suficientemente relevante para que publicizem o inquérito e, como todo o relatório esmiúça, trabalhamos formas de apartar a imagem da empresa do ocorrido. Informantes de Eloá, dentro da Fundação Marinho, alegam que o caso está sendo considerado prime time pela equipe de jornalismo.

Reitero meu pesar, atenciosamente,

Beatriz Cagacazzo, Gerente Geral.


2023 fevereiro


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