elogio à verborragia (2/5)
O presente texto é a reprodução fiel, embora aviltada e enviesada, do diário de leitura que escrevi do meio pra segunda metade de 2019 como atividade final da cadeira de Literatura Brasileira II. É patente que, enquanto atividade avaliativa, a docente estabeleceu uma série de limites parassociais explícitos ─ coisa de lista de assuntos viáveis pra exploração ficcional ─ e todo o meu diário, portanto, se abriu no estudo desse campo limítrofe: o que é uma forma elogiosa e leniente de entender e conceber toda essa falta de respeito. Não nos falamos mais ─ da minha parte porque não comprou meu livro, atitude que pode ter raízes nesse diário. Vem a público como esforço de sair dos meus documentos, como forma de desaçucarar meu corpus, inclusive. Me dei à delicadeza, no entanto, de omitir o que me conveio e isso não vem a ser problema de ninguém. A primeira parte também se encontra nesse blog. Essa é a parte segunda. De total são cinco, como convenciona o parêntese.
1 Jun - Mas e a narrativa do delírio?
Tá bom, tá bom, eu subiria no hipopótamo; trancei minha cela com fios capilares condutores do colágeno elegio das falhas, formas e fibras, seja lá o que... sei lá, quis me desfalecer nas fumaças dessa fábrica de desfiguras: é assim que, como os amigos que leem e elogiam o escrito por mim, muitos me me perguntam porque ainda não publico ─ existindo nisso certa nobilidade, a de negar, navegar isento pelos recifes-estímulos ─ sem que eu tenha resposta pronta. E sem a cegueira da celeridade estimo o último dos Cubas. Psicografo em grafia grifada a álcool, dos dias, rios delirantes, margens quartas e quintas que precedem #sextous outros que os em que me desfaço, apesar dos feais feriados da fecundidade, garanto em número e grau o engrave pétreo dos gritos de mero vácuo-Pessoa, e 'arderá em mim eternamente, inutilmente, a ânsia ─ estéril ─ do regresso a ser'.
2 Jun - [⁂¹]
Ontem não fui ao teatro, como pedia a atividade da cadeira e o quanto diligentemente nos descolastes a vã de transporte da UFOP pra BH; se não tivesse ido também Dorian, ou Lord Henry, eis a dúvida, [⁂] talvez Sibyl pudesse sublimar sua Ofélia no palco, não na make, [⁂], essa será a última entrada com termos psicanalíticos colocados aqui e ali como colantes de caderno, vou guardar o resto numa pasta pra não usar nunca, quem souber onde escondi que a enterre comigo. Assim justifico ficcionalmente a ausência discursiva de culpa, esse é um peso grande demais pra costas autoflageladas. Se eu não tive alegoria dramática melhor que essa que fiz é porque não fui ao teatro: a ineficácia também tem seu propósito estético. Meus regressos e birrinhas são quase-sempre pro Wilde. Tentarei, pros propósitos ─ agora ─ de fazer valer minha ausência, tatear o provável do efeito da minha escrita: se já concordamos com a ficção de um eu no acordo do gênero, piscando pra Barthes, imagino que concorde também com as emoções prescritas e causadas por esses caracteres, efeito daquela velha falácia, e se fui competente ao mínimo, coisa de discente e docente no praxe do proceder, preciso te adiantar na pergunta que imagino surgida. Que é: se eu preciso de ajuda. Recusando o número da psicóloga do NACE, não, não preciso; só me chame pra beber quando me acabar a grana. A resposta é não, veementemente. No que excede a essa falta [dinheiro], a chamo preguiça financeira com os íntimos, cê também, agora, não preciso de muita coisa, só tempo, talvez um intercâmbio pra África, mas seria feliz só com tempo.
Minto de novo, por que me deixa mentir ó diva da escrita domesticada, morosa musa Diário? Cada dia, cada entrada, precedem a uma mentira temática, e a felicidade talvez seja a que melhor masturbe o polígrafo: não me vejo feliz, não me vejo com tempo, não me vejo de volta de uma viagem mística, pendurando a sobrecasaca de cavalheiro no Pão de Açúcar, com respostas, com sugardaddies, com um emprego desses de cafeteria e macbook, salário por fim, ações na Pfizer Inc., um PDG em psiquiatria; me vejo artista no Brasil e as implicações neo-românticas que acolhem essa escolha, pudesse eu escolher um concurso público, não teria esse tom canoro de quem coletiviza as causas das crises depressivas, de quem se culpa por ser sublime. Talvez seja esse o comentário mais profundo que eu possa fazer sobre Memórias Póstumas: feito o emplastro, na flor dos anos, descubro sua ineficácia, a morte não confortará a consciência como culpada última da inação; saber que agir, fazer, vir, ver, conquistar num latim-inglês do César-sexy do Marlon, numa tabuleta de mal-fim, qualquer feito do escravo-hegeliano que se vê nas coisas colocadas por ele no mundo, nada, nada gera completude. Pros brancos e pros coitados, Brás-vivos às suas maneiras, existe o coach do vir-a-ser duma vida justificada em feitos, mas não pra nós que vivemos o mundo nas ondas de suas incongruências. Negreiros ─ agentes do verbo de fazer-negro ─ num mar tempestuoso, se nos alimentado aos petiscos com os corpos sem vida de visões que tivemos de nós no futuro, feéria oferenda, e que não puderam ser, amarradas como estão, ou flutuando, como não paramos pra pensar, mas flutuamos.
Por que não fui ao teatro? Primeiro um circunlóquio: muito se fala sobre a bolha universitária, muito se reclama das falhas nas tentativas tautológicas de enriquecer a experiência da terceira perna da dotadíssima academia, a Extensão; nunca fui muito disso, se reclamei foi da bolsa, se escolhi UFOP em vez duma UF-qualquer em que a nota de corte de Letras continua sendo a nota de corte de Letras foi porque vi o Seminário da Boa Morte por fotos, e, pra além da delícia do nome, o isolamento me comprou ─ achei ser mais, não imaginava Mariana do tamanho que é: vim em busca de um monastério e encontrei o mundo. Mas esse era um outro eu, que conversava como os calouros conversam no snooker à tarde, com a mesma intensidade mal colocada, com os mesmos infanto-juvenis, causando uma impressão péssima nos caminhoneiros, que sonhava como quem faz dos sonhos uma quaresma, sobrou dele só os fumos e o que tô pra dizer: se o significado não é um cão ─ como o querem que seja ─ há algo que é, há uma leitura esperando pelas coisas, em algum lugar.
Os bichos não são nada além de quadros em branco de explicações simbólicas, então pego meu canetão, o cão é o povo, vejam esses diagramas, ok, cão é batido, usemos outro animal então, a lula é o povo, vejam essas palavras em grego antigo e comentemos suas não-escolhas desinstruídas como comentamos a graça de virais de bichos tomando topadas nas paredes, não é isso que se faz no QG dos fatos-sociais? Pego emprestado, em delírio também-emprestado, de alguém o adaptador VGA/HDMI e vemos em sala diversos vídeos no youtube, rimos até onde a preocupação poupa os músculos da face, é dada minha tutoria, paga, merecidamente; gastarei no comércio marianense, entre aspas, o dinheiro do Estado. Tenho estado muito triste. E não é assim?
Até que tomemos seriedade, mais uma vez, em falar 'a esquerda não consegue mais...' e qualquer coisa que ela não consiga ser uma alegoria pra babytalk, pra explicar desenhando, pra proselitismo, pra nos acusarmos de 'medo de povo' quando dizer 'o povo' na terceira é o verdadeiro medo, pra conversar com inocência, da inocência, pra inocência, num fodido processo pedagógico que beira, perigo, perigo, a demagogia. Já que nem a língua é a mesma da que eu usava saindo d'o povo' ─ e não é que 'o povo' é humilde, é que 'o povo' vislumbra isso tudo aqui a que dou cruzados nos peitos, todas essas conversinhas brisadas, o povo se odeia, 'o povo' espera isso de quem fala sobre ele ─, nem o diálogo segue seu fluxo materno, já que a violência da discussão das verdades dadas flui laminar até o limite do masoquismo, somos inimigos, oras, nós e os operários, é aí que a vontade dos conservadores se confunde com a realidade palpável [⁂]; não conseguirmos ter o alcance, não importa o que façamos, que tem uma reportagem malfeita da Record. Sinto o peso disso. Parece um julgamento majestosamente injusto, mas não penso em termos de culpa, demagogia não é escolha que se faça, nem chego mais de joelhos ao altar do que faremos, do o-que-quer-que-façamos; pouco me importa, a possibilidade de articulação não é uma balança com todas as pompas, tudo aqui está a nível de exemplo, só serve pra mostrar a que andar da torre de marfim me levou o elevador das leituras que eu tive e o quanto isso não serve pra quem esperava alguma coisa de mim.
Então alienação pra mim podia ser uma tatuagem na testa e seria menos permanente ou óbvia, conseguiria melhores empregos se fechasse o rosto em tribais, me sinto alheiado, se vivo é em isolamento. Muito pode ser lido da minha resposta ao sucateamento da universidade, o quanto eu levo isso pro pessoal, levo mesmo ─ o quanto eu sequer ligo ─, na tentativa de ser o monte desse sermão [⁂]: não tenho lugar fora desse terreno público, l'académie c'est moi, se sou vagabundo nas cadeiras é porque sou vagabundo comigo, se não me importo com a extensão é porque não tenho estamina pra me estender pra fora da preocupação com a minha saúde ─ por enquanto, não sei até quando ─ se não ligo pras acusações de balbúrdia é porque queria que fossem reais, se não na minha casa ou com a minha casa em jogos de sueca, ou fotos nossas nas paredes, não vejo a nudez em lugar nenhum dessa cidade, se não ligo pra que fechem o instituto é porque tô cansado demais de lutar pra que não me fechem por completo, e embora saiba que preciso ser o sítio arqueológico das minhas 'vivências', me abrir como museu em autogestão-inclusiva, preservar esses ossos do incêndio inevitável do tempo, falta verba, falta muito ainda, que volant não importa o que se escreva; apesar de todas essas constatações não vejo a hora de virar estacionamento de shopping. É frágil, é difícil, é até triste, mas já ouço os carros, já sinto a impermeabilidade, se secam meus lençóis. Durmo pro meu próprio bem.
Então por que não fui ao teatro? Porque não ia poder ir, só isso, sem doenças ou desculpas, e eu saberia previamente e poderia ter avisado antes ─ agora sim, doenças e desculpas ─ se olhasse o calendário além de dia por dia, se o grid de datas não me desse vontade de gritar igual porco pego pelas patas; tinha o rock da [⁂], mesmo sábado, às 15h, já comprado o ingresso ─ vinte, uma grana ─ a promessa de um dos poucos momentos no ano que me sinto parte orgânica de qualquer coisa. Entre sintéticos ─ trinta, uma grana─, que seja, sinto. Não só isso, mas eu precisava de um rock essa semana, precisava beber de tarde sem invocar a rotina de piadas sobre alcoolismo como o stand-up de roda de AA que transformei e invoquei a ser a minha cozinha porque aqui nem o CAPS nem a NACE andam dando conta, precisava saber não ser o único em uma multidão experimentando a maçã-do-amor de um Éden químico, e é uma coisa que escapa a mim, essa vontade, essa fraquezinha, essa necessidade clinicada, como uma disforia à sobriedade, não tive como evitar; talvez a balbúrdia seja real, não tão boa pra justificar as represálias do conservadorismo, não tão frequente, ainda não tenho sarcasmos pra isso.
Então tava no rock, não fui ao teatro, sem muito tempo pra arrotar entre os goles, quando começa o show do [⁂¹] e o ecstasy, no duplo sentido ─ apesar da grafia univocamente tendenciosa ─ não me deixava completar ou contemplar direito a epifania que acontecia, só rolaram sensações-sobre, [⁂] conheço todos [os membros da banda] dos rolês, agora só conheço as relíquias [⁂], enumero e adjetivo sem muito cuidado: o [⁂], das noitadas, loucuras de que me lembro vagamente, o cara da batera, que sempre achei gato ─ e nesse caso sem a culpa mui-desconstruída de ser branco ou padrão ─, o do baixo, que fez cadeiras de tradução comigo e quem [eu] pegava deitando atenção em cima das mil-merdas que [eu, como sempre] sempre tenho a dizer, como se eu viesse de um Saturno com anéis de papel e nuvens de leitura, e o [⁂], que conheço a tanto tempo quanto a textura do chão do redondo, quando eu, calourinho ainda, tinha tempo de sobra pra enlouquecer em sociais com a [⁂]; conheço também o [⁂] que se apresentou com eles esse dia, não sei por quê, não perguntei, apesar de ser meu tutorando em Introdução aos Estudos Literários. Mas e daí, qual a treta tão importante em um show nosso pra nós, se é isso toda semana, de um jeito ou de outro? Confirmando a conversa rasa de que aqui é outro planeta (UFOP ─ Universidade Federal de Outro Planeta, muito bem colocado pela Desciclopédia) todos fazem alguma arte, muito bem ou levemente mal ─ mesmo que veementemente mal ─ todo mundo que não usa camisa polo tá pendurando o ICHS pra fazer qualquer outra coisa que valoriza mais que essa joça que serve pra segurar processos de pensão e acusações de vadiagem, não há muito tinha um tal Gustavo matando aula por aí; e assim como o [⁂] essa galera da banda é foda, não tanto quanto, né, comparações são canalhas, mas eles são bonzassos, [⁂] — e me permito, se me permite, adicionar posteriormente a essa frase a observação de que esse adjetivo, bonzassos, é repetido pelo [⁂] toda vez que a gente se vê, depois de ler essa minha entrada.
Sinto preguiça agora de descrever as fritações que eu tive com algum senso de ordem ou encadeamento, muita coisa pra digerir num estômago sem as mesmas [⁂] de antes, contextualizo enquanto isso. Minha mãe, já especulei o porquê mas ainda não consigo concluir, quis um filho artista, e pra todos os efeitos, por todas as noites de insônia que sofre, ela tem, louvado seja: sem cuidado se deseja, descuidadosamente se cumpre [⁂]. Sendo arrastado como aradeira nessa semeadura do talento fui colocado em tudo que dava a preço módico ou de graça: danças, piano, coral, desenho; ela não conseguiu me colocar no violão, porque à época o clima ribeirão-pretano me dava náuseas anti-sertanejas, nem no teatro, por respostas instintuais mais complexas. Nunca gostei especialmente de qualquer uma dessas coisas, não terminei nada, até me apresentei algumas vezes e tenho uma mão boa pra me distrair nas aulas de EDU ─ posso fazer brisinhas boas o suficiente no papel pra pendurar nas paredes da casa e mostrar pras visitas ─, mas, como comecei dizendo na primeira entrada, a literatura foi o minha única boa colheita. Apesar disso, sempre quis fazer música, coisa de divagação recorrente, desvario jovem, ter banda, tocar alguma coisa, arrependido até o tutano de ter associado as cordas com o Country Fest fico querendo juntar qualquer quinhentos reais pra ter um violão e cobrar favores cidade afora em busca de mestres, tocar dia e noite Bon Iver na varanda sem tirar a taba da boca, caetanar ─ no ridículo disso tudo.
[⁂] Enfim, existe algo extremamente sintomático quando falar que eu gosto de uma coisa não é o suficiente, sinto a necessidade de dissertar, de mostrar a carteirinha platinum de seja lá o que for que eu esteja colocando como meu clube, e a certo ponto minha sociabilidade foi formada por essas afirmações; não tem como não fazer uma associação identitária quando penso nisso, mas essa observação entra na lista de título Depois, onde terei paciência pra didática, mas adianto: quem conhece essa necessidade já conhece o racismo no Brasil. Eu podia comentar aqui sobre a questão da raça no diário da Helena, sobre desnaturalização do status quo nos pensamentos íntimos que [ela] tem ─ mesmo que sob a guisa da bondade branca ─, sobre a permanência das velhas estruturas nas entrelinhas da escritura dos nossos dias, mas não, dispenso, tô cansado de saber dessas coisas, cansado de ter que ler ou ouvir de [⁂] o que eu já sinto, talvez a história sirva pra acordar as monarquistas ruivas eleitoras do Bolsonaro, eu tomo remédios pra dormir.
Sem provar nada, sem pagar de Pitchfork, digo que gosto de música, que uso pra quase tudo, que temo pela minha audição a longo prazo, e finjo que isso se estabelece factual pela credibilidade da luta diária pela autoridade da narrativa de mim, mais um acordo fictício pra assinarmos. Digo que gostaria de fazer parte da cozinha desse buffet que me dá tanto prazer à pança, mas que apesar do piano, por dois anos exatamente, não tenho os rudimentos, não sei se terei, e essa possibilidade me reconforta de forma opioide enquanto, também opioidemente, me sinto limitado. Sem sutileza nenhuma pulo pra conclusão: me sinto sem talento, sem competência, sem a afiação necessária pra perfurar o mundo, pra domar essa fera que deixei entrar no meu terreno e que alimento com medo, com meu corpo, pelas grades que coloquei em volta de mim; na rua, peregrinando nos pastos de pedra e prédios tortos, povoados pelas pessoas possivelmente mais preocupadas que eu, possivelmente melhor propulsionadas ao que quer que tenham decidido fazer, e sinto longe de mim esse eu-artístico. Mesmo que consiga assumir essa toga verde, às vezes, no papel pelo menos, pelo ponto de vista viciado pela percepção dos outros, sinto o vazio dessa vanguardice, sentindo simultaneamente a pressão de ser algo pra alguns, um exemplo, como são pra mim meus amigos pretos, prontamente, mas preciso colocar um ponto-final agora pra abrir um ponto que me deixe explicar melhor.
Um dia aí, não lembro bem, antes da sua aula de terça, rolou desse [⁂] estar com o violão, o [⁂²] estar com o violino e a galera estar no redondo com saudades do domingo, cantamos Metá Metá e, outros MPBs do mesmo estilo, eu tinha bebido; badalando 19h20 [sendo a primeira aula do período noturno oficialmente programada pras 19h, aula essa que era essa] eu me senti na obrigação de ir pra classe, não só por obrigação ─ fica aqui velado meu elogio à sua docência ─, e ia me levantando, lento até, no que o [⁂²] me viu indo e disse 'chega disso, vamo desistir da academia, viver de música', ao que respondi que não tocava nada, o que é verdade, que não tenho como, mesmo cantando junto com todos, mesmo não me sentindo especialmente desafinado. Ele respondeu então, espontâneo, 'mas cê escreve'; eu, já no corredor coberto indo pro prédio velho, entre beber um gole no bebedouro e amarrar o sapato gritei 'grandes bosta' e rimos. Já tá claro? Grandes bosta. Não se trata necessariamente da diferença de peso entre um violino e um notebook, acho ─ a metáfora funcionaria melhor com a imagem da pena, óbvio ─ mas serve, imagino que se trate da diferença entre duas autoestimas; aqui falar de racismo sináptico, das infraestruturas neurais e tudo isso parece um tanto raso, ele também é preto, já conversamos sobre isso, ele me entenderia se eu sentasse e contasse essas coisas, como já contei, como já entendeu, e se conversássemos de novo sobre o quão opressor é esse ambiente branco, embora não tão nojento quanto a maldita UF[⁂], o óbvio seria óbvio e o patente pra mais de cem-anos, mas pensando na vida brasileira como um RPG ─ tinha fumado, daí a falta de liga ─, dos ruins, ele conquistou XP suficiente pra não levar os danos que eu levo, tem um tipo de armor retinto que me fodo em cliques no terreno por não ter, também porque eu fiquei em casa lutando com poeira enquanto ele cumpria suas quests, dando a cara no mundo. Ninguém enche o chapéu dum poeta fazendo o seu na calçada. Escritor é a versão ainda menos glamorosa disso.
Conversava essa semana com a minha terapeuta sobre começar o seu diário, as ideias que tive, e que horríveis até aquele dia [⁂], enfim, mesmo ainda não tão boas quando eu queria, contei, o que retomou nossa conversa sobre minha fixação em produzir; ela conhece um pouco da coxia da minha escrita e dos problemas envolvidos com isso, não vou transcrever o diálogo, longo demais, o que ela queria saber é se eu finalmente ia acreditar que escrevo bem quando uma uspiana, doutora, leitora voraz, gente boa, elogios como copos jogados no Jardim de manhã, quando uma pessoa sendo tudo que eu valorizo, ironicamente ou não, me disser as qualidades que meus colegas, leitores recentes, leitores de prova, futuros doutores ─ portanto ainda não arrependidos; é essa a qualidade da coisa, que neles falta ─, me dizem que tenho. Será? E o que farei de matéria literária depois disso?
Parte de mim imagina que seja pensamento paranoico o porquê de me terem como artista no ICHS, porque me esforço pra não mostrar nada, não fazer nada em público, não aparecer pra valer, não fazer como fazem os sarauzeros, em quase [⁂] de escrita; outra parte imagina que sejam os óculos, meu conforto com as autoridades em literatura, a forma desbocada de desmerecer as instituições, os boatos que, debulhados de boca em bituca, transformam em eventos as poucas vezes que eu fiz alguma coisa. Durante o show pensei em escrever sobre a humildade do talento dos outros me colocando no meu lugarzinho medíocre de alguém que não faz mais que a obrigação, que tá aí pra isso, que come Europa e arrota Europa com frequência de invejar as primeiras ondas de rádio, eu sou tão domesticado e filho-da-puta, mas o violino do [⁂²] parece tão antropofágico, tão coisa-dele, é o pão que o Jean Valjean roubou pra que todos vissem que janelas são só vidro, que posse é só fala, enquanto eu lendo latim parece tão vira-lata, yellow-bone, negro-de-casa, bibliotecário deles, pensando em Deleuze quando devia pensar Edileusa [como, de passagem, nem fui eu quem fraseou: creio ter sido a Jup, ou ao menos foi dela que ouvi] ; e pensar ─ palavrinha sem vergonha essa ─ que me lerão como essa figura pós-estruturalista, destruidora, marreta na língua, ladrão de livros, enquanto eu em mim sei que não posso destruir nada do ocidente porque sou o catalogador dele. Muitos amigos me dizem que fazer parte do coletivo me faria bem, também acho, às vezes, nem sempre, só não sei que bem eu faria pro coletivo, corrigindo na minha cabeça, instintivamente, pronúncias anglófonas ou neolatinas ─ desprezando, isso publicamente, a introdução dessas coisas na roda ─, vendo que me veem de sabor negresco, mesmo que isso não seja correto de se dizer. Lendo Fanon me sinto o eterno-retorno do Lima, se falei alguma coisa de bacharelismo, se o próprio Gilberto Freyre falou disso, é pra calcular o perímetro específico onde me encaixo pelo desencaixe; quando devia ser Febrônio sem as crianças. Ou com, que se foda, sou uma aberração de qualquer forma. Isso é trabalhar as obras?
Falando em ser, sou um Paulo Honório às avessas, nas horas vagas me pego olhando a S. Bernardo imaterial que conquistei grilando ideias, usurpando em usuras, tendo por fim ganas de comprar a contos de réis emprestados a hipoteca dos pertences-aos-pedaços dos verdadeiros herdeiros da intelectualidade branca; não consigo ser Madalena com toda a sinceridade, as falas matutas me tiram as rolhas da paciência, escola me lembra colonização, bato o pé dizendo que a terra ensina o que se há de saber por cima dela, derrubo à mesa o vinho do extremo rancor que tenho de ter sido feito, por escolha, o que fiz do que fizeram de mim, em todas as complexidades alheias ao que veio a se formar como minha vontade, manchando as toalhas da empatia, e ouço os murmúrios dos serventes quando pego eu mesmo os panos e corro ao rio pra lavar essa porra toda, murmurando comigo: como não se percebe o mal que se faz a si pela necessidade? Que crédito tenho nisso tudo? Faz sentido criticar a educação? Vou ter que defender, mais uma vez, o brocha do Paulo Freire, ou tomarei alguma autonomia pra dizer fodasse, que seja feito o que quiserem, peguem essa merda, queimem os livros ao que me importa; mesmo não precisando de nada disso, se já assumi ter preguiça de licenciatura?
Pra pegar essa sensação de asco [⁂] é lendo meus textos, não sei ainda se um conjunto coeso ou só vômito, é espiando pela fechadura da preguiça temática que precede o autobiografismo ao falarem os narradores [⁂], a injustiça da sagacidade sem objetivos dos olhares baixos; eles transam, a vida é gozo, enquanto eu, sem terem me avisado nada, decidi me assumir muito cedo porque achava ser do mundo parte de uma minoria sodomita que não se deixa curvar pelo não saber de si, e essa minoria existe, com certeza, e é o futuro, onde não me vejo claramente. Sou, ao contrário, mais um garoto com abas de pornô abertas, morto por dentro de entender que o machismo todo é sintoma dessa força homoerótica que construiu o mundo em torno dos coronéis e dos papais. Pertencer a uma comunidade é o caralho, solidão de cu é rola, a igreja evangélica, os grupos neonazi e as repúblicas de Ouro Preto foram feitos pra esses caras comerem os próprios rabos; não tenho pena, não destilo compreensão, eu também queria essa putaria, só que sem o dano colateral ao feminino [⁂], por que eu, entre todas as crianças de COHAB, é que tive que me isolar de verdade e procurar na arte os meus pares? Por que eu não joguei futebol pra foder nos vestiários? Ainda teria chances, se quisesse, de lamber as botas desse patriarcalismo da forma mais chique, já que me tornei um latifundiário nas terras dos vlogs com estantes de fundo, cheias de capas de couro, cangaceiro do velho continente, fumando cachimbo como um Hans Landa que verdadeiramente entende os ratos por ser um, o maior de todos ─ e o que é roer senão destituir a materialidade de todas as coisas quando, numa aula sobre pós-modernismos, como retorno ao objeto, nos pedem os mais aferrados aos próprios pressupostos pra morder a cadeira que até então só algo apartado enquanto conceito (pernas, costas, banco, por que não banqueta? por que não poltrona? por que palavras?) do difuso maior? E por que essa possibilidade me dá tesão? Tudo isso enquanto a banda tocava, e mais coisas, resumo: se não prestei atenção foi por falta de foco, drogas são mesmo drogas, mesmo quando ferramentas, mas imagino ter sido a única pessoa que não pegou ninguém. Tá que eu não tô sozinho, tá que existem clubinhos pra parafilia do isolamento como a minha. Tá que eu sequer acredito no sozinho. Mas se não me suporto, se não aguento o barulho da minha saliva ecoando no oco do que tenho pra dizer, que diabos vou fazer entre semelhantes?
Não fiz teatro por causa das bichas. Mas dançamos muito das bonitas quando acabou a banda e começou a música.
4 Jun - Felo-de-se³ (ou Fons et origo mali)
Omitido por demora e esquecimento.
9 Jun - Ego vivo (ou Affidavit)
Ando, como Hilda escreveu em uma crônica em 95, 'cada vez mais complicada e isso de precisar escrever pra todo mundo entender me faz jumentosa e triste.' Volto pra Freud por teimosia, por causa de um trabalho pra uma outra cadeira, por causa da leitura de S. Bernardo, por o achar longe de entender como funcionam as coisas quando diz sobre o prazer metapsicológico da sublimação, a narcose da arte, onde o Destino não nos comeria as beiras dos beiços como baratas noturnas; recorto curto, destituo do seu destino, trocadilho, a viagem da teoria psicanalítica à genética simbólica. Na verdade queria parecer polêmico, mas devo muito à verdade, ou uma de suas primas, pra pedir mais coisas emprestadas em nome da construção de frases feitas, de críticas de jornal online, coluna de jovem-influencer, respeito o doutor, ele sabe que o de dentro é mais foda que o de fora, os entraves, as cortinas travadas, roldanas só ferrugem no palco-italiano da mente, compreendo que ele compreende, compreendo a prolificidade de o usar pra ler Graciliano e nem assim mudo meu tom, suas antíteses não esperam os próximos parágrafos, isso diz bastante sobre o meu recente bloqueio criativo. Tô cansado de ler direito as coisas.
'A escrita é, na sua origem, a linguagem do ausente, e a casa, um sucedâneo do útero materno, a primeira e ainda, provavelmente, a mais ansiada moradia, na qual ele tava seguro e sentia-se bem.'
Acordo às quatro, ressaca moral? Lavo a louça, limpo a cozinha e o banheiro enquanto o sol se põe na beirada oeste desse manto manchado de rosa ─ como são, muitas vezes, meus olhos ─ que me cobre junto da lua diurna e desencarnada, centralizada pelos morros como se fossem sua moldura de mogno. Ligo um chuveiro que por pouco não queima ─ vejo sua faísca fúcsia por sob o plástico ─, inalo o vapor úmido com a fumaça seca dum incenso de canela e baunilha e vejo nisso algo como um equilíbrio, uma paz: uma finalidade. Tô vazio por dentro, anulado de tanto jucar, igual várias vezes, não sei quando a última ─ não tanto quanto um período, mais de um mês ─ em que vomitava bile, nu com o meu discurso, pouco antes de uma prova no período da manhã, e, como sempre, como um canto de coruja escutei em mim um pensamento-crítico me perguntando se era aquilo que eu queria pra minha vida: aquela destruição, todo aquele caos, todo o exagero, toda essa precariedade; menos de segundo, que pareceu tempo suficiente pra meditar num barril, juro, menos de segundo me veio junto ao líquido a resposta em voz alta: por que não? Grandes bosta. Por que não fazer o que eu quero se eu quero, não importa porquê, me destruir? E então tomei um banho semelhante a esse. O que considero qualquer-coisa como o inverso desse impulso.
Ontem, pela primeira vez desde o início do diário, o que simboliza um grande tempo, comparando ao costume recente, fiquei louco de doce. Vou roubar a desculpa que fiz na entrada do dia dois de que a sobriedade lineariza os fractais do meu pensamento, complexo como o litoral da Grã-Bretanha sendo medido por uma régua escolar, mesmo que isso seja mentira; o fato é que ecstasy apaga a memória, ou pelo menos me faz beber o suficiente, sem perceber, pra que o álcool a apague como a sujeira num vidro ─ na metáfora o álcool sendo álcool domiciliar ─, o que me faz ter que reconstruir os passos ilógicos que imagino que tomei e encaixar o que encontro nas lacunas específicas, um puta trampo. Reencontrei o [⁂²], nesse ontem, na mesma república dos playbas da eleição; se pareceu é liberdade de estilo, mas nunca fiquei bravo com o acontecido, não levei muito pro pessoal, fodasse, não cobro muito de quem não grita o próprio crédito, gosto quando me provocam, a pensar, pirar, pistolar sem que saibam, tirei alguma coisa disso, como sempre, como é comum da doença de pensar, e a sensação foi de fim de paranoia, dissolução de delírio, retiro o que disse sobre pares e semelhantes, retiro o que disse sobre a humildade, sobre o isolamento, sobre solitude, sobre tudo; as pessoas, num modo geral, não muito pessoal, gostam de mim, me acham divertido, encontram um conforto cômico nos absurdos que eu falo, e, a partir disso, encontro um porto seguro de fidelidade a mim, numa virada brusca de baía onde entro dentro do que me faz ser eu mesmo, acolhido na mesma Guanabara que os presuntos e os esgotos. Me perdoo um pouco, não digo de quê, ou quando, e também não acho que sei.
Quando digo isso penso especificamente nos pretos e pretas talentosos, nos comunistas que não enchem o saco, na vanguarda que vagueia pelos corredores desses prédios velhos entre ondas diversas e diversos temores; que se fodam os UFOPianos da maioria e que se foda a impressão que neles eu causo. Coincidência ou não, provável não, compro os esquemas estranhos da rotina, e acabo de ver pelo instagram da minha república, um aluno de economia tirar uma foto de escritos do Quesnay, especificamente os que falam da impraticabilidade dos impostos, e os legendar atemporais, como um caderninho de coach, como uma dica de booktuber, oi? E pessoas do ICSA que diversas vezes me elogiaram, em todos os sentidos, ou me gastaram todo em rasgação de seda na tentativa de um café ou uma foda, vejo, procuro, seguem ele, que por si é bonitinho ─ justifico em mim que a minha casa o segue também, em provável, por isso ─ e no desenrolar dos rolês dessa cidade de merda nossa disparidade de força mental não faz diferença, [⁂]. Existe algum elitismo perigoso em falar assim, ou é só uma malícia rabugenta? Isso me faz voltar, me faz virar com tudo a cabeça pra onde eu mesmo apontei pedindo discrição, sem ser discreto, pra ver que não devo nada a ninguém e que ninguém me cobra. Solidifiquei do racismo internalizado a necessidade de ser melhor ─em ser branco, em ser a silhueta delgada dos meus sulcos cerebrais ─ que todos eles, que toda a branquitude e suas vantagens, pra conseguir, depois de ser melhor em tudo mesmo, nunca errar, ser o monumento vivo do desmentimento dos estereótipos, ser mesmo um sítio de visitância, carregar a erudição como um Sísifo de livros, sombra ideal dum sujeito àqueles que me veem numa parede de pedra; e quando, numa FLIP aleatória, eu tiver na mesma mesa que um escritor qualquer da minha geração, rachando, os aplausos-automáticos não perceberão a diferença entre pós-modernidade ultrapassada e fisiocracia mais ultrapassada ainda, acaso o trabalho, seja lá o que isso significava no século XVII em relação ao que significa agora, produz riqueza em contato com a terra na distopia do dois-mil-e-tarde-demais, entre hidroponias e monoculturas robotizadas de soja? Talvez, mas atemporalmente? Quem nos tetos da própria consciência consegue usar uma palavra dessas, mesmo na internet? [⁂] Ia propor o chiste de que deveríamos então plantar batatas no Machu-Picchu pra pagar as contas atrasadas da universidade, mas até nisso encontro um caminho: se descriminalizarem a maconha, criemos uma empresa jr. ou cooperativa nesses terrenos de bambu, aí sim a comunidade saberá que existimos, a Extensão será mais fácil que reclamar do frio, pagaremos toda a água suja da cidade, reconstruiremos em Bento e por Bento uma fábrica, colheremos nela flores de ferro que serão derretidas pras armas pra revolução: imagine a cara dos pacifistas dos anos sessenta. Imagine a cara dos nossos, atemporais, agora. Me deem três dias e uma pá.
Tomando esse banho aromatizado reconheci minha fisicalidade, um belo corpo, nem nisso me deixo ser vencido, um dos faunos favoritos da mata atlântica, fritando minha flauta de sabor surrealista enquanto Pã sonha onirismos urbanos. Embora permaneça contido nas costuras de um presente de árvore sem frutos, Daphne carvoeira, trabalho sem lucro, libido deslocada em arte, me reconheço um ser completo, levemente desperdiçado; e o teor fálico dos instrumentos de sopro é muito mais que testemunho de uma universalidade simbólica, a potencialidade Tumnus-tityrus num novo cinema negro de apagamento de fogueiras, Calíope é negona e me abona com o dom da escurividência, enquanto descanso na descoberta do fogo, entre as cinzas, satyr anapauomenos no reflexo do box, não-por-menos com uma ereção de arar plantios, sinto o sol me esvair em uma forma de fluorescência ─ é o chuveiro, que, como eu, teima em não queimar, mas queima. Bateu: redesenho o esmeralda do esmaltado dos azulejos.
Às vezes me sinto me lendo na voz da Fernanda Montenegro, no teatro, mas em outros ela do Quanto Tempo o Tempo Tem, onde tudo era respondível com 'pergunte pros brancos': aprenda novas línguas, leia mais livros, além de se desgraçar de produzir em um sistema sem perspectivas, viaje com o mínimo de grana que juntou, pra torrar, viaje pra lá, veja o que com óculos escuros nos ouvidos ouço: trabalhe mais. Como se todo o Brasil tivesse o tempo que essa galera teve pra brincar de academia. Como eu e essa galera, que apesar de não tão rico tive da sorte o azar de ser muito mais em todo o resto. Como se a pós-modernidade fosse o playground onde tudo é possível pelo mérito in, quando o mero se secar na toalha já conta a história das diferenças: a minha sempre molhada, naquele gelado que tem cheiro. Todos os varais usados, todo o tempo do mundo investido em que eu esqueça da brisa leve da varanda, ou, quando não, que ela seja o suficiente. Não é apolítico ser o suficiente.
Ontem todos os problemas se densificaram em uma sensação de infinitude interna, desde sexta, no CineOp, vim bebendo, mas nem todo esse álcool pode conter a proliferação dessa cultura-fungi de ideias; me senti livre do extremo peso das relações de poder que centralizam minha atenção e discurso, que massacram minha fruição da arte, que me fazem remontar minha esquerdice em [⁂], e por isso pude pensar ─ melhor, incomparavelmente melhor ─ as futilidades em que se ocupam os que não precisam se preocupar com nada. [⁂]; nesse mesmo recorte de tempo o Intercept revelou algumas obviedades, as dez medidas mediram a própria métrica, a capa do paladino ficou presa aos próprios grampos, e não fará a minima diferença. Quem já desconfiava não merece prêmios, quem nem imaginava essa possibilidade me faz mover moroso contra o movimento antimanicomial, cliniquem compulsoriamente a direita histérica, ou prendam o resto só pra separar ─ ou porque, na falta dO Alienista, temos nosso próprio sanismo ─, tô exausto de monólogos, no mínimo era preciso psicanálise regular no SUS; parem de me arrastar pra essa enxugação de gelo, pelo menos a minha ducha, diária também, se mostra útil no apagamento público dos meus traços animais.
A ausência de LSD-25 faz meu corpo de trem da Vale, pesado, rangendo, buzinando por fora e narrando por dentro, gastando uma energia do caralho pra uma viagem sem motivo prático e sem prazer estético, uma espécie de turismo exótico do tédio, redizendo que o nome da cidade veio de uma velha que não tinha caralhos o que fazer aqui, que tal coisa foi tal bomba, que tal capela tá só a couve do bolor; mas poderia andar nos trilhos sem tudo isso, até Ouro Preto ou até a lua, pouco importa, construindo ao ritmo dos pés nas britas uma sinfonia cinematográfica transcendental ─ ou o que quer que de som semelhante os jovens façam quando nesse estado ─, e talvez ser atropelado, a ludicidade é perigosa como todas as coisas, meu corpo me buscando de vez em quando nessa mesma linha, entre seus cul-de-sacs, mas meu trabalho em relação a isso ia ser só de segundo plano, só desviar, ia ser ser livre pra me poupar do teste da realidade e seu princípio posterior, fritar, delirar pra valer. Não querendo Ananke me fazer de idiota ─ porque havia quando eu vi ─ ainda haverá na parede do balcão da Lafaiette uma A4 com os dizeres 'não dê esmola, dê dignidade': e nem fodendo, minha dignidade tem preço, essa substância é meu remédio, junto com outras siglas, THC e CBD, minha saúde parece um relatório interno de startup, se eu ficar dando o que não tenho, já que não tenho mecenas a me patrocinar, if I wanted a sugardaddy, diz o ditado, olha a audácia, a pachorra, a desgraceira, o violento disso tudo. Dê dignidade. Quem retém a dignidade? A canalhice do comércio marianense dança no durex e tem manchas de impressão de cartucho, não querem dividir os lucros nem com a Gaia† .
Falando em divindades esmorecidas, me encontro escrevendo um texto semi-hermético, o narrador precisa das mesmas receitas que eu e que a medicina brasileira se impede de liberar dos porteiros pra fora das vivendas e villas, mas que são comprados mesmo assim; o doce é Odisseu polítropos, engenhoso, conquistando lugares com seu ardil aventuroso, guerreando contra a realidade a ponto de igualar força com o mundo, já o chá é a Penélope, temerosa tecelã, a calma, a lugubridade sadia dum lar vazio, o pecar pela cautela, a resistência rochosa de uma produção sólida e constante. Ao contrário de mim esse narrador entende seu ódio, entende a sensação fodida dos tremores abdominais avisando que a consciência foi regada do néctar lisérgico não diminui a influência de sua desmedida, liberando em si uma energia inigualavelmente olimpiana pelas coisas como tão, repelindo tudo, tanto por tudo que se vive quanto por ter tido o trampo de achar a substância pelos únicos meios disponíveis. Seu único protesto é maior que tudo que consegui: não fazer nada. Tudo se desenvolve em volta disso, ele acorda no dia do aniversário, se medica, primeiro fuma depois dropa, tenta encontrar jouissance no claustro que construiu pra conter fora as mazelas da América Latina só pra contemplar o mundo entrando pelas frestas da janela; seu companheiro, um artista de ação, de esquerda, de espírito, mais um viado compositor de poemas e que desconhece o Pasolini, é arquétipo duma filosofia de devolução, do demérito do silêncio, é contra se resguardar, militante ativo em se resvalar na merda como jogo cênico et cetera e tal. É uma escrita ressentidíssima‡, nasceu desse sentimento sincero de não deixar nada pras estantes desses merdas filhos da miséria; ao mesmo tempo que é uma escrita justa, justíssima, mais que supérflua, apesar disso, que me permite brincar com uma possibilidade de satisfação que nunca foi minha: a de não sentir culpa nem de maneira abstrata. Incompleta, há tempos assim, desde o início do ano, tem como título alternativo "eis o documento legal de um ser absoluto", tirado d'O Príncipe de Fogo, depois de "art thou weary, art thou languid" de um cântico muito simbólico mas que já esqueci. Não pense ser só uma forma de encher linguiça colocar o primeiro parágrafo aqui, em primeira mão, mesmo que essa motivação me passe também pela cabeça; talvez seja. É também uma forma de entender o quanto eu não me identifico com a ideia de que me seguro, em termos estilísticos, quando o gênero me pede a tarefa de ser compreendido: só acho chato, queria poder me divertir nessa lavra verbal mas a crítica de cunho social no Brasil, como novos Tolstois, me leria como o mais pomposo dos neo-parnasianos, quando a ideia é outra, pelo menos digo isso do fundo da minha cova pra um velório ao som de caixas. Ouço subirem os fardos. Não convido nenhum dos meus contemporâneos. As cerquilhas e to-cares são cortes ou lacunas, coisas que faltaram ou não achei nome. Lá vem.
"Genius, o, art thou alive? Como se boom ou vroom, preso à palma como al-jinn na lâmpada o propano-butano esperando expansão, como estralos químicos de cometas-satélites de encontro a satélites-cometas-cadentes, de colisão calculada por antigos anciões num vetusto farol na mira de um dulcíssimo meteoro, com suas prodigadas e ansiosas visões proféticas, como se dissessem, viddy and viddy well a vela noturna se esvaziando de vida pro avermelhado amanhecer marítimo mapeado como se desde sempre por ondas de rádio, como faísca e flamas compondo a cena de um poste em curto sobre um bar-tabac, como uma bomba-cavalo chicoteada por um chapéu de peão caindo céu abaixo entre os aplausos e gritos que precedem a morte de tudo; explodo o isqueiro no distante breu por trás da rubra névoa rotoscópica da pele, reanimada ex novo, anew, e acendo o cigarro dormido, semi-dormindo, o sentindo como um recém aparecido e revolvente graal, dissolvendo lentamente como uma miragem do espírito, fruto cósmico da minha sede de ventura, como um dínamo entre meus dentes, calada caldeira, fervendo em industriosa fricção fumaças quais as de Dostoiewski; é medicinal se eu disser pro moço que mora na esquina da farmácia, agora, a sei lá que horas são, a sei lá se sol ou sirenes, saindo sem corpo, formando a vida pela função, ficcionalmente, imaginando que ele permanece parado como um poste ou uma tabacaria sem tabuleta, deixando que o chá se venda por si enquanto não compro, ### esperando que a cada vez me chamará de Esteves ou Godot como se eu não tivesse nome, mas se lembrando de mim e me perguntando da vida, prosa de padaria, continuará até perder a sua própria pros pow-pow-pow, ao que antes direi, perguntando aquilo, se consciência de classe é uma espécie de fibromialgia? Talvez, mas talvez também não seja pra tanto, penso enquanto esquento o motor do peito como uma ignição a dísel ###, quando sinto o branco encharcar as buchas da minha caixa torácica como uma espuma propriamente dita, lavando as vasilhas sujas do sono que deixei acumular na pia do pensamento, despertando da leveza dum delírio sonâmbulo num mais leve ainda espasmo de tosse, ainda sonho; dou, narinas bestialmente abertas, a primícia da flor que fumo ao orvalho dos morros torce-ventos, retrago esse algodão de brisa-viva e retiro areia dos olhos como se recolocasse de mãos vazias o pince-nez de uma visão profunda; bocejando agora, quase lúcido e vendo, com um controle remoto imaterial abro lento-lento as pestanas-portões e a rua se reflete nas piscinas-domésticas da minha alma, na silhueta do nariz reconheço, no desvanecer desse aerosol-áureo entre o Ícelo-céu nublado, algo como a neblina invernal suando entre as arvores do Itacolomi. Sinto, através do trapézio mental de onde pulo sem perspectiva de chão pra que as redes de segurança do meu ser recolha a minha massa de multicelularidade inescapável, das TK nesse picadeiro de portas de chifre e marfim, TK ainda pendula o sonho embora reconheça o esqueiro de jaspe-cor colado junto aos dedos, reconheço, pelas brumas do bravado de que achei que saía como saem por aí os germes, o baixo relevo do repouso pesado de mim; o traficante e as tagarelices retornam tal memória de tazos perdidos em batidas traumáticas, tenho aos bolsos TK a troca, imagens opacas dessa náusea nostálgica surgida de ontem pra hoje, esse luto mais que recente dessas já ausentes figuras, TK um cruzeiro de luxo em naufrágio se transformando no dilúvio da cidade, sal e lama, uma barca de pessoas TK ó, Deusa, tudo mais que Medéia-Mnemosine me possuindo atoa entre ressacas de ironia mefistofélica, invocada nos ritos, onde fizemos à noite anterior lixa as ambas identidades-digitais na boca vulcânica dum cachimbo-ferramenta que tando eu agora como panóptico deitado desisto de achar, retomo o barco atracado ao leito lerdo do despertar, ó Lete-loot mental, sabendo que esquecerei o que me resta disso, mesmo ao saber agora da falta que me faz o que já esqueci, acordo."
Quando seus olhos puderem ler mais coisas depois da piscina rasa que deixou neles o bocejo que deu lá pelo meio do parágrafo, ou agora, lerá que as firulas são firulas, eu não tenho ilusão de fazer poesia com isso, fazer boniteza, chorar didáticas medicamentosas nem nada, é pra ser hilário só, engraçado porque o enunciador, ainda sonolento, entende a fundo a graça de tudo isso a que chamam erudição e cultura, há um certo foda-se que não se sofistica pelo uso de termos gregos; é pra ser um meme.
O difícil da coisa tá sendo descobrir de onde tirar essa enunciação se ela não deveria existir, se os rastros são embaralhados por esse Curupira-Macunaíma, um Marcel sem redescobrir, um Paulo Honório sem sintoma; a saída mais rápida é pensar no companheiro, uma espécie de Gondim, praticamente historiador, fazendo oficializar sua predisposição ao palimpsesto, isso justificaria a ênfase às referências, falsamente relevantes, ou o quanto a sintaxe não deixa dada a porquisse acanalhada e pomposa prevalecente: e é preciso deixar claro, o Brasil tem certa predileção à claridade, mesmo quando negra. O resto do texto tem versões paralelas demais pra tentar sintetizar ou colar trechos, o que abre ainda mais o leque de possibilidades pra organizar numa discussão temática, mas não sei, tivesse a disponibilidade de 5µg diários dessa maravilha do dezenove-38 eu até podia me preocupar menos com qual parte de mim terá mais votos nessa plenária, que força maior me rege, se sou mais leitor ou letra, e focar no que se diz de tudo isso, podia até mesmo me fazer mais claro ─ escrever introdutórios, como querem fazer ser tudo o que lemos ─, mas não vejo por onde olhando pro extrato do meu banco. O engraçado pra além, muito além, disso ─ e isso já tem, vá-lá, sua graça─, é pensar que essa piração não começou assim, que as discussões sérias vêm sempre depois, na verdade era só uma exploração erótica, tudo começa na pulsão, né não? Não. Sou poeta, dizem, me leem: enquanto a dama-da-noite neva pétalas à porta do mundo minha call mutada pulsa como um pau à minha espera; não é escroto, não é extremo? Nasceu do desespero. Nasce porque eu acho tudo por aí muito patético mesmo e não vou pedir perdões nenhuns por não pensarem em mim, eu que pense. Grandes bosta.
Pois escrevi a possibilidade de um colega meu de história, famoso no PIBID, essa é toda a chave que darei, por uma sequência de olhares cruzados e pelas centenas de vezes que me convenci a pensar não quando as coisas se constroem em sim, quando eu abaixar a porra da guarda e deixar ele também levar ao chão o papelão heteronormativo, pra ficarmos escondidos numa esquina escura de calçada, qualquer coisa que valha, pra transarmos hedonicamente igual cães de rua; sendo ele um dos principais críticos da minha imagem projetada enquanto eu-Hilda pergunto como que pra ninguém: mas você me leu? Ah, é tão foda o quanto eu tenho que comer desse prato afrancesado, como se ele acreditasse que eu acredito em algo semelhante à sapiosexualidade enquanto fuma do meu chá ou eu do dele, o que tá longe de ser, como se a tensão sexual não tivesse ficado até beiçuda pros amigos sentinelas que confiro como câmeras de segurança quando, inseguro demais sóbrio, distraído demais louco, não percebo ser objeto de desejos, sou um câmera da Globo atrás dos espelhos.
Ainda bem que tudo deu a sua mudada, trabalhar em cima de falsas expectativas é receita pra insanidade, trabalhar em cima de expectativas reais ─ mesmo que infinitesimalmente improváveis ─ é psicografar a alma do homem moderno, o mais moribundo dos lares, sem muito tempo pra reencarnar; enfim, não lembro desde quando mas, tem algo estranho acontecendo, ele não conversa mais comigo e eu não usava metáforas espiritistas. Pelo menos deu tempo de usar [a situ, o acontecimento, etc.] pra alguma coisa. Se pá sou noiado nessa parada dos detalhes, da arquitetura dos acontecimentos simples se somando, sintomas-testemunhos de uma dimensão inconsciente, talvez é só clima, só kairós, só eu reparando demais onde não tem padrão nenhum, mas vendo um ─ inserir a piada ─, na caleidoscópica quarta dimensão, girar entre outros, fractalmente idênticos. Padrões, padrões, padrões — um pouco é o doce que faz isso.
12 Jun - Le défàut d'un sujet
Desculpa, não terminei de escrever a última entrada, parece um fim mas não é, não discuti porra nenhuma de obra nenhuma, não dá pra mostrar isso pro MEC; o que é até bom, já que eu posso fingir aqui uma fidelidade à consistência como se eu nunca tivesse editado depois do dia-prazo — completando só depois —, também posso aproveitar o comentário, mais que brilhante, que cê fez na aula passada, sobre o Paulo Honório ser o extremo oposto do Marcel. Muita coisa passou pela minha cabeça e pelo caderninho na hora, vou tentar fazer o que eu não faço num modo geral, que é me organizar.
Tive o pensamento livre de anular o Paulo em mim — não durou nem um parágrafo eu não focar na microscopia da minha vida íntima —, depois de descrever minha identidade pelo negativo-material da dele, nunca tive que trampar mais que uma semana por vez, em bicos, em desesperos financeiros que depois passaram, e apesar do ponto ser bom, pensei em colocar de título hoje a frase [⁂], pesada como é, porque em mim o processo angustiado de me entender, estender minhas peças na mesa de uma causualidade mapeada, notar por que vias o mundo se infiltrava como cavalaria pesada pelos flancos da infantaria desordenada mim, começou tão cedo quanto o de imitar os personagens da Disney: o desemprego, primo do privilégio quando não acompanhado de precariedade, desenhando uma vida avaliável nas tardes de nada pra fazer, assistindo de relance toda a programação da TV Cultura, me abonou na infância de tempo; e talvez começou aí, telvez tenha se dado aí a gênese disso com a reação das pessoas, com Pequeno Urso ou Castelo Rá-Tim-Bum, com a doente disparidade no script das coisas ─ esperando que o tempo não passasse nunca, porque às seis meu pai chegava, e aí ─, parece ser um processo tão simples mas que falho em tentar descrever. Ao caralho, parece que me tornei o Gato Pintado.
O primeiro homem que me lembro desejar foi o Michael Jordan, via Space Jam, e isso não é uma constatação retroativa: tive três VHS desse filme, o último era da locadora, devolvendo por conta dos danos, nem cobrando reposição porque me conheciam; a cena em que todos queimaram eventualmente era no terceiro ato, um dos monstros perde o calção e corta pra um shot do Jordan rindo, uma risada que depois encontrei em Marlon Brando e que nunca mais voltou pra pele preta, infelizmente, depois que a universalidade das tretas homorrelacionadas que no ocidente remonta a tudo que estudei na escola sobre os helênicos e etruscos, quando em Roma já se perguntavam 'et, Bacchus ubi esset?' [Ou seria assim fofo textualizar, a coragem de ser sintoma, o corte-limpo que separa o tema, mas desde que escrevi esse trecho desbloqueei LL Cool J da memória, Ice Cube, Lenny Kravitz, só pra dar exemplos de presenças globalizadas. Linear e continuamente até os dias de hoje, cujos exemplos, até famosos-demais, omito, com a exceção do Jaden ─ que foi um erro. Existem deturpações na direção dum fenômeno real que, pela intenção, não são menos equivocadas. Tem madrugada que eu fico só no pensamento de como eu deixei esse parágrafo sair assim ─ os efeitos que eu almejava e tal ─ e a totalidade da coisa é pra ser lida com as próximas entradas. Isolado assim, merece o adendo.]
Minha educação sentimental foi impulsionada antes de tudo, como pra maioria dos loucos e dos dandys, pela necessidade de saber primeiro pra ter tempo de esconder, como não? Toda uma vida partindo da premissa de um B de ponta cabeça num pórtico, desafio? Perguntei uma vez pra minha mãe se ela nunca me reparou namorando o jogador de basquete, numa época em que ainda existiam fitas cassetes, e ela contou que nem passou pela cabeça, ela achava que era a piada da nudez, que era a bunda de desenho, ou que eu era novo demais pra esse tipo de malícia. Enfim, achei que teria mais destreza pra trançar os argumentos mas parece que o truncamento é real, parece disartria, dou palavra a Rancière, falando sobre o que Corneille ─ ou Voltaire, je sais pas ─ creu ter que suprimir em sua versão de Édipo, sendo "o afrontamento verbal, nuclear em Sófocles, no qual aquele que sabe não quer dizer ─ e assim mesmo fala─, enquanto aquele que quer saber se recusa a ouvir as palavras que revelam a verdade procurada", que é a negação, vejo, no senso comum psicanalítico, na transferência mais comum ao outro geral do destino, como uma primeira fase da descoberta, depois acho que ira, depressão, PTSD, chamem os bisnetos do Freud pra explicar, tô de porre dessa troca de metáforas.
Comparar negação com mentira é uma cilada da qual tô consciente cuja consciência aproveitarei nesse parágrafo: a mentira é simulacro de uma realidade que toma forma na ponta leve da dicotomia platônica, portanto existe ─ pra alguns ─ enquanto coisa-em-si; quando a negação é sintoma de uma realização interna mal ajustada com o resto das coisas, como uma quina de caixa estourando a beirada duma sacola plástica, também ideal, e, portanto, supra-existe, já que toma fruição nas tentativas de fazer com que não exista. Mas a diferença é palpável: enquanto a segunda é natural, a primeira é arte, é trabalho, dispende muito, cria guilda, merece sindicato; a segunda se recusa a se conceber como tal mesmo na revelação do fim. E apesar de as duas coisas nascerem num berço de necessidade, em duas dimensões diferentes, só uma delas pode resolver tensões economicamente, imagine qual é.
O Paulo Honório não mente, e isso dá pra ver na linguagem, nas resoluções, imagino que esse falsear, tão próximo de mim, tão longe dele, tem ligações simbólicas com a escrita, é coisa de cria de cidade, muita gente muito junta todo dia cria sumo pra análise, ou com a escrita enquanto metáfora pra memória. E esse era o papel da mulher, a imagem da pena, da Madalena ─ Madeleine, é mole? Depois a galera quer pintar o cara como se não sendo escriptofílico, como se pudesse figurar primeiras-leituras ─, coruja numa terra de pequenos mamíferos, mentirosa, sim, porque tem musa até pra isso. Concluo ─ revelando, por fim, que se tratava de análise ─ que mentir parece ser o oposto de negar, onde o processo é de olvido; onde se dirá: nada se esquece de verdade, ou quase nada, as coisas mais fodidas ficam latentes, esperando a limpeza do tapete. Ao que direi: pergunte isso ao sobretudo. Sobre tudo que se diz, pouco se guarda.
Nunca consegui, verdade seja dita, manter na portaria da persona essa fixação em mentir direcionando pra dentro, pensando agora quando a negação se coloca como um conjunto turvo de escolhas e consequências que levam ou não ao excruciante autoconhecimento; esse segurança de shopping, esse fiscal da alfândega, essa PM da mente, porque o fora me pareceu sempre carecer de maiores preocupações, num militarismo realmente patriota como o da busca por petróleo, então ─ ou ─, no perigo que corri, sendo os moinhos verdadeiros Golias, se [eu] gastasse tempo com essa ditadura latina, com que economia teria energias psíquicas reservadas pra importantíssima tarefa de mentir pro mundo? Fui mentiroso-mor, hoje aposentado, monto navios em garrafas, e se não risco mais as impressões das fantasias macabras que inevitavelmente tomam forma como um eixo paradigmático de tudo que venho a dizer é que a anatomia dessa composição não me causa mais suador, é artesanato [⁂].
Quando disse que não escrevi diários antes, ou pelo menos não consegui efetivar a missão, esqueci de dizer que foi por impetuosidade preguiçosa, por força estática, por peregrinação manual pelos ares de alfazema do mais-o-que-fazer. Na escola existia o registro, uma espécie homeopática de relatório de atividades, dum programa didático acanalhado, projetado pra me tirar o tempo e me turvar a atenção das brincadeiras da idade do ciclo básico; se de fato ainda vivemos sob a égide do sujeito do XVIII, posso confirmar que o início da minha carreira acadêmica, nas crises intermitentes às quedas da chupeta, é marcado pela minha luta contra a sua burocracia imbecilizante, contra o Papai-Noel a quem pedi num natal uma lousa branca onde esquematizar, para o próximo, sua captura, e voltar da caça com a carcaça da revelação da inexistência. Pedi coisas caras depois, sugeri em que economizar, o meu pai, pra que as comprasse no fim do ano, os pomos que pendem do pescoço da cobra, mas isso é filler: minha meninice foi uma merda, não só porque precisei adaptar a minha relação com uma realidade em que eu não cabia, ou pelo menos não nas planitudes plenas da Normalidade®, também não me permiti acreditar em nada que não pululasse em meu peito, poucas vezes, porém críticas, me senti sinceramente culpado por tudo que me caía em espontâneo e esperei que Deus abrisse, vendo meu desespero, esse diálogo, tão necessário, sobre a natureza das coisas. Jesus nos sinais, nas borboletas bamboleando ao vento, enquanto endureci os gestos, nas pombas batendo as próprias vidas nas janelas de vidro, enquanto cogitava suicídio, no sol, na chuva, qualquer coisa que já tava e o que não veio, senti diretamente a diegese do solilóquio, então fechei por minha vez o meu lado, não visitaria mais uma cadeira vazia pelo vidro furado da prisão ôntica só pra ouvir na linha cerrada, aos olhos dos guardas, a reprodução dos meus suspiros. O ateísmo reveio depois na política e nas drogas, não me deixei governar por pressupostos metafísicos, tudo aquilo que creio foi concordado por mim pela conveniência: senão em confiar no gato-não-gato das malas trocadas em locais públicos, não exalo ortodoxia alguma, não vejo nas alucinações nada além de química, e basta, tudo basta, a morte é real e basta. Antes da universidade eu era a pessoa mais sóbria sobre a face curva desse planisfério, o que me fazia, além de chato, um inimigo da Negação dos outros; fiz a transferência de forma tremenda, depois de internalizar moralidades caducas do externo fiz de sala de consulta minha amizade, um consultório condenado ao coletivo, fui um vilão franzino desafiando o herói aplaudido no tatame, cinturão invicto, se fiz disso meu tesão é porque sobrevivi, hoje sou dono dessa barbearia de barbaridades banais que se tem por masculinidade, da qual fui expulso, renegado revim, monomito, não minto mais, só brinco, nada disso é relevante pra história, conto mais depois.
Volto pra casa, férias após férias, pra ouvir que fui fagulha da criticidade de muitos, quando em mim o que efetivei foram só espasmos duma febre interna. As pessoas faziam testes em meus sonhos onde eu, Boninho dos sofás delusionais, testando frenético a validade de tudo, realmente fui base de alguma coisa. Menti muito, por casualidade ou por causas, se não me assumi mais cedo, sabendo de tudo em mim, foi porque achei mais produtivo ser S do que G enquanto andava com as, ainda não formalizadas, L [oscilando mais pro B, agora, e quem sabe quando e o que mais, ou quando]; identifiquei certa nobilidade cavalheiresca de defender causas que não minhas, e sendo próprias não seria eu mais vassalo do Arthur das távolas dos debates imberbes do ensino fundamental, detentor da... Enfim, é chato, é longo, fica como dito, então. E o que aconteceu aí, apesar de tudo? Tive que me desvelar a verdade de mim como se a cauda desse véu tivesse irreversivelmente em chamas, sendo isso o fim da cerimônia, e o que encontrei, olhando pra trás, já correndo, tarde demais, foi um puto extintor na porta da igreja.
Le beau est toujours bizarre, bom Baudelaire ─ nem tanto ─, mais uma bicha; Proust entra nessa história quando tentei ler a Recherche pela primeira vez, com dezessete, chegando até Guermantes e estagnando no militarismo imberbe do Robert, sendo eu mesmo um grande leitor de Nietzsche e Proudhon à época [⁂], me identificava com o boyzinho do Marcel mas antes de tudo com ele, até o tálamo; já que eu era em mim ainda um viadinho nevrálgico, passando pano pro conceito de friendzone desde que não saísse das engrenagens engraxadas da máquina masculinista, repassando no cinema da memória todas as cenas que conseguia projetar da minha quase década de consciência, que tinha por plena depois dos oito pra dez, pelo menos por já me culpar por todas as escolhas que tive, como a de largar a mamadeira. Falar que eu fui adotado não foi só metáfora, sei lá onde nesse relato, e não ter falado erotismos de minha mãe pelo prisma da fase oral é consequência apenas de não ter sido amamentado e não ter lido o suficiente pra entender como nessa estrutura de desenvolvimento entra a sucção do látex; se for em usar camisinha preciso escrever uma réplica ao Doutor, não é bem assim; se for essa a tal mamadeira de piroca podem descartar o combate, poucos usam pra isso, com certeza, com certa razão, vendo os números, é mais fácil morrer no soco que no suco.
Nan não supre em sua fórmula as finesses da imunidade materna, nem leite de cabra, então cresci uma criança de hospital, somando a isso uma superproteção temorosa, maternidade profissional de quem teve que largar tudo pra ficar trancada em casa, e uma visão paterna quase esquizofrênica de mundo. Então comprei da minha própria vida a hipocondria do Marcel, das minhas próprias análises de causa as dele, praticamente tudo menos o pai: invejo a figura autoritária dos pais europeus como um Christoph-Ludwig Hoffmann ou um Jakob Kafka, já disse, como não cabe reafirmar, meu pai era um tirano patético, e antes de saber qualquer outra coisa eu soube como era ser governado por um idiota, sobrevivi, como sobreviverá o Brasil depois desses próximos três anos, se chegar a isso.
Confessei que escrevo coisas, que estou na feitura de minha estreia literária, e pra isso tenho prefácio: "Dedico essa obra ao meu pai, o alcoólatra desgraçado, e a todo Wissen especulativo-apriorístico hegelianamente erguido como suas meias sujas às naves do nariz, na sala, nas noites em que os sentidos das coisas se inflamavam metamorfoseados, nas vias venosas, no bafo de pinga, o universalizando, cabelinho partido no meio, cabelinho de buceta, como se soubesse alguma coisa do mundo e como se o mundo fosse de fato alguma coisa a ele" e justifico, ironicamente: "Que o tailandês trabalhador tenha perdido os pés de trombose, tragicamente todavia, não é motivo pra que não lho devolvamos os tênis que fez, ou é, quando ─ finalmente ─ aparedarmos os patrões? Estando alienado do uso ou significado prático do seu labor, não estará ele alienado do valor de venda, ou da possibilidade de lhe atribuir qualquer valor simbólico que deseje e que o sirva como serviriam quaisquer all-stars se pés ele ainda tivesse. Nesse mesmo sentido dou o livro ao meu pai. Que use as folhas pra limpar a bunda e as calças borradas, pouco caso me faz, que berre prantos às portas da vernissage, vale que mantive seu nome e lhe prestei alguma forma de tributo do que lavrei daquilo que lhe levei das mãos do que já lhe houvera sido lavado pelo patrão na produção, Mehrprodukt, na pensão que eu fiz ele me pagar." Drama, luzes, atuação de Malhação e máquinas de fumaça, não sou poeta? Não tenho a chance de ser um dos grandes?
Não usarei, é lógico, o patético é patente, mas foi um bom exercício quando fiz, pra perceber em pixels que meu pai não era o coroné que se fazia pensar, que precisava ser, na fantasia de si mesmo. Eis o palco da vida doméstica que impede a autocrítica da arte: se eu parar pra pensar, eu não tive uma origem trágica. Nem ninguém. E a verdade é que seria melhor se eu tivesse jogado futebol como ele queria, como ele achava que comandava os pensamentos presos naquela casa pelo poder da dependência financeira da esposa, desempregada, e filho, prisioneiro legal; se imaginam aqui coisas que são comuns numa casa de periferia ou subúrbio, não sou mais versado nisso que ninguém. Como meu superego não seria a CIA que é? Se sou um leitor exímio de mídia foi porque tive que assistir televisão por várias pessoas, pensar com afinco sobre o pensamento que não pensa pra me prevenir quando ele viesse distorcendo notícias e roteiros, pra sair correndo da sala quando ele viesse se retorcendo por dentro da língua, em busca de algum significado ─ algum Significado ─ pra grande merda de vida que ele trabalhou tanto pra ter; o quão trágico é um Édipo filho de plebeu? Nesse sentido meu pai tem muito mais de Paulo Honório que eu: não me identifico com a falta de repertório, por oposição a esse exemplo, tão próximo, repertório é tudo o que eu cri precisar ter, e a tristeza da coisa ─ não a minha ─, e de que já dissertei muito, é ele não ter nada a que olhar, senão pra mim, no passado, ou pra casa em si, num passado ainda mais distante, ou aquilo que eu sou agora, esse grande desconhecido, esse monstruoso de possibilidades. Tudo que tomou independência e lhe foi expropriado, no divórcio com a minha mãe, no processo de pensão que eu enfiei no rabo dele: parece não existir possibilidade de engendramento do processo de patogênese pra esse produtor, é literalmente too late, assisti à primeira fila do Coliseu, patrício da vida comum, a dissolução de quem teve tudo o que quis e perdeu; é o capitalismo, a fumaça de tudo, principalmente das culpas fáceis.
Ainda me encontro em Doncières, babando em botinas pela janela, entre as histórias da notoriedade nobre, a vontade de viajar pro cu do mundo, lendo coisas no quarto, degustando o dissabor da exaustão de ver nesse coletivo amorfo dos trabalhadores o trauma infantil da injustiça; sei da problemática disso, não posso negar ─ se é pra acreditarmos no que eu escrevi, nem saberia como ─, é sobre isso a entrada de hoje: não posso, é tarde demais pra colocar de volta os olhos que me tirei com o broche fora de cena, porque essa coxia foi toda a minha formação como indivíduo. Minha decisão, lá no médio, de me assumir, tinha só implicações relacionadas ao que fazer com a qualidade pública da vida, as dificuldades, do peso que sinto agora de toda essa militância, entre outros rolês, porque nem por um segundo me deixou de ser clara a constatação de que tava fodido por uma série de fatores sobre os quais era inescapável refletir, pra não me foder mais, pra falar em termos de redaçãozinha faćil. O mais triste de ter tido tempo, no Brasil, pra ler o suficiente e conhecer uma quantidade razoável de pessoas, é ter que comprar do mais copo-sujo dos fodidos aforismos de bar de que inteligencia é sinônimo de infelicidade, porque nesse país desatenção é privilégio; veja quem mais se desvia da cartilha da moralidade cristã enquanto conforto fácil é público, quem não se deixa facilitar pros analgésicos, e verá quem, por direito, devia cursar psicologia pra fazer desse curral e suas lucubrações uma coisa menos hipócrita. Isso custa muito dum sujeito. Um dia chego em Sodoma e Gomorra, um dia ─ o que lembro de Charlus é tão vago e tem o som da voz de tanta gente ─, e aí verei o quanto tive certo em pensar o que pensei.
Por isso não absolvo a absorvição de Helena em sua própria subjetividade atonitamente perplexa, senão irônica, de não entender diferenças nos corpos dadas tão preto-no-branco; é anacronista de mim imaginar que a vacuidade do sistema colonial deveria ser, pra além de indignação de escrivaninha, coisa real? Redigi a realidade pela racionalidade que rascunhei aos poucos do saber científico, não havia pra mim força em ilusões fulgurantes, essas pontas-de-faca-cega duma jovem garota contestando as coisas não me dão arrepios porque no fim ela não fez nada, tudo continuou ao redor dela, até onde eu li, cadê os dedos apontando as fontes de toda essa desgraça? Cadê o tapa na cara da mãe? Nessa idade tava pau-a-pau com a diretora da escola, discutindo coisas mais graves. Não digo como coisa positiva, inclusive. Li Universo em Desencanto até onde a rachação fez valer o tempo em todas as reiterações da palavra racional ─ o The Room dos tratados filosóficos ─, não me contaminei; antes e depois dessa figuração enfadonha, por meios muito próprios, ao contrário do Tim, sou imunizado. Tinha tido tantas religiões, tinha passado por tantos humores, que se fosse um Danilo Gentili da vida diria que um Tibete inteiro se mataria pra me matar. Nem um chapéu nem a porra de uma cobra digerindo seja o que for, um desenho é um conjunto de linhas residuais numa superfície, seja grafite no papel, seja cal no asfalto, seja a mente no pontilhado do céu noturno, e quando não sabia dessa possibilidade polissêmica da representação visual, muito, mas muito provavelmente, não sabia nem mesmo ler, o que nunca me deixou apreciar essa patifaria de adultos infantilizados que se tornou, ou sempre foi, Petit Prince. Falei, imunização racional. [⁂], mas lembrando agora, na hipnose da escrita de si, percebo o quanto de diversão eu perdi; espontaneidade nunca foi pra mim.
Voltando pro Proust, no fim sou esse cara agora, escrevendo, escrevendo, escrevendo... Pra? Por? Há? Hã? E eu não sei como lidar com esse chorume colonial de me perceber pensando, ao anular o Paulo em mim, que trabalho intelectual não é trabalho, que eu não posso justificar meu desemprego com uma vida acadêmica malemá bem direcionada, malemá, com os documentos na nuvem esperando que por um acaso do destino eu encontre um editor sem sair de casa. E Brás, onde entra? [é dentro] Me valeu de algo viver a vida calçando botas curtas? Não acho que faça alguma diferença terapêutica pensar como o cinema, essa piração de noiadinho besta, em realidades alternativas, multiversos, teoria de cordas, anzóis e minhocas. Tô agarradão no real. Pago pra sair, logo buscam. Pensar ─ palavrinha filha-duma-desgraça-das-grandes ─ na minha tristeza infinitamente espelhada pelo ilimitado de acasos que me fizeram possível enquanto todas as coisas sem as quais eu não seria, coisas ruins, vão passando como seiva por esse tronco milenar onde se prendem pro chicote os corpos que não cooperam, não se cooptam: pensar é uma merda. Fritar atoa é até pior. Por isso eu gosto mais das drogas que te metem sozinho.
O que eu não sei é se a minha existência é muito necessária ao século. Quem sabe?
[⁂¹] Nome-de-banda. O teatro era um passeio ao CCBB de BH — programado pela mesma professora que o projeto do diário de leitura — pra cadeira eletiva de Dramática, ou alguma coisa assim.
Escrita ressentidíssima‡ que infelizmente não virou nada. No seu estado corrente, ou seja, até o dia da adição das notas, o parágrafo e suas parafernálias compõem, em uma versão mais sóbria, um romance que eu escrevo ─ um de muitos ─, não sobre nada anteriormente aludido.