elogio à verborragia (1/5)

 

O presente texto é a reprodução fiel, embora revisada e revisitada, do diário de leitura que escrevi do meio pra segunda metade de 2019 como atividade final da cadeira de Literatura Brasileira II. Depois de muito tentar revirar e reciclar trechos em outros projetos (sem sucesso), vou dar pra esse texto o golpe de misericórdia que ele merece: a publicação ─ mais como constrição que orgulho. Me dei à delicadeza de sumir com os nomes de pessoas que porventura envolvidas, tão-como passagens cujos mal-envelhecimentos não contribuam ao processo documental. No mais: jogo de vírgulas e eliminação de hipercorreções — não muitas, sou agradecido ao perceber. Parte primeira de cinco.


29 Mai - Queria um prefácio do Georg Rudolf Ling

Angustiado, percebo ao começar o trabalho de me colocar em linhas o sintoma mais forte da minha personalidade, que se pá seja artístico, patológico de qualquer maneira: de que é tarde. Foi assim aos quatorze, descobrindo [⁂], meu primeiro relacionamento sério, e o extremo do desespero de me sentir muito-muito tarde, como um solteirão na ceia de família, como se tivesse desperdiçado uma vida e uns graus oculares em qualquer outro tipo de preocupação menos que literária, menos afim da minha consciência de mim e o que quer que isso envolva, menos próxima das minhas feridas famintas de dedos; daí, angustiosamente rápido como uma recicladora de papéis, pra [⁂] do [⁂] quente da prensa, com dinheiro ganho de presente por meus dezessete anos, reli no mesmo mês, fui pro original, tomei decisões, ainda achei tarde. Ano da graça do nosso Senhor de dois-mil-e-dezesseis, tinha pago há tempos a inscrição no vestibular do ITA sem ir na prova; pirei, decidi que era tarde demais pra continuar bem alimentado ou ter respeito profissional antes de fruir a vida que eu queria, romantizei os românticos, mostrei o rabo pras expectativas, percebi na plasticidade econômica da classe-média industriária a possibilidade de pensão até os vinte-e-quatro, e quis escrever, quis fazer letras, faço; um ano de PROUNI num curso noturno e a genialidade chegou no e-mail como um velho concurso público de que esqueci estar na lista de espera, porque não há nenhuma imagem que óculos grossos, a Europa na saliva e ponto-e-vírgulas não conquistem no interior paulista, ou sendo menos turvo, a minha pressa e os mínimos-necessários da estética eram demônios únicos do meu deserto, qualquer bacharel-mulato munido da fonética diária da concordância dos plurais vai ser tratado por senhor pelos motoristas de Uber, me viam na classe rasgando pra frente e pra trás as três traduções do [⁂], me viram nos bares próximos recitando num italiano fuleiro de pizza de frango-com-catupiry versos do [⁂]; era como se eu fosse o escritor que queria, mesmo que tivesse que sublimar essa castração simbólica.

Foi nojento, se bexigas formam boas metáforas minha estima de mim era uma, a inflação precedeu o que sempre precede, mesmo acostumado a crises depressivas tive a pior de todas, me tranquei num claustro de quatro ônibus por dia e [⁂]. Até aí sem manchas nos dedos, sem nada pra mostrar, só café coado, só a potencialidade da oratória adolescente, responsabilizei o SUS por minhas tuberculoses e quase-anemias, vivi o sonho fragilizado de ser incompreendido por não dizer nada, vários dez, vários muito-bons, reafirmei o que até então era só suposto: que a elite brasileira é imbecil. Senti orgulho de uma escolha que não foi minha de não fazer vestibulinho, onze anos na fábrica de botinas e eu era o [⁂] das conversas forçadas nos intervalos. Mas lia, tão tardiamente, pensava, Sade, Shakespeare, Proust, Pessoa, [⁂], Foucault, Caio F. Abreu, entre outros viados; efetivei meu desdém por aquela instituição frequentando a biblioteca, separando páginas nunca abertas pela guilhotina da gráfica ou qualquer alguém que havia entrado naquela faculdade, lembro bem, livros importados de Lisboa, da Ática pro attic, se não tivessem etiquetas duvidaria da presença de digitais, me afoguei ainda mais em isolamento, conversar com quem o quê? Além do pré-vestibular auto-didata, inexistente em real tempo gasto, vasta vaguidão, vontade de no ano seguinte zarpar, como não pude nesse, pela idade, pra me ver como me veriam através da superfície de um lago maior, pra aliviar das narinas o chorume de cana e as pretensões noturnas de baladas lotadas e latinhas de éter. Comecei a ler muitas mulheres também, [⁂], Hilda, [⁂], Clarice quase como interlocutora duma necessidade de entendimento, e a angst crescia com a lista. Tentei escrever, falhei, fui obrigado a escrever e me vi medíocre, sem linguagem, tudo era lugar-comum, tudo era pastiche de diário com canorismo, superficialismos e pontuação. De certa forma ainda é.

Já calouro na UFOP, no ano comum de dois-mil-e-dezessete no calendário gregoriano fui incomparável párea dos beat-boyzinhos, machinhos-Bukowskis, carinhas-Kerouacs, a crise passada criou discurso, os perrengues me puseram sob perspectiva, a autocrítica megalômana fez seja lá o que fazem as doenças naqueles que produzem; colocando mais coisas pra dentro que os hospitais poem pra fora, comprei à vista minha insanidade química, e entre receitas e não receitas escrevi a primeira coisa que não me deu um nojo imprevisto pela intencionalidade, recitei pra uma platéia menos plácida que antes e disso tirei duas coisas, não revelo quais. Nesse processo morreu a dissertação acadêmica, a mediocridade inquilina foi ocupar esse cômodo como se a ele sempre tivesse pertencido, a ansiedade clinicada vestiu aventais de gente útil e limpou a casa à moda de Baco; não que isso justifique alguma coisa, mas tá aí a explicação do mal-fazer do trabalho sobre a cor-local, peço perdão, me coloco à disposição de compensar com isso, tô agora com muito mais que pressa de terminar alguma substancialidade no campo das coisas pretensiosas. Tudo escrito por duas ou três explicações.

A primeira, e mais óbvia pra mim, é a de eu ser um diarista de primeiras entradas, descobri isso voltando pra casa e encontrando todas minhas agendas do fundamental utilizáveis a partir da terceira página, e o que havia não era muito diferente do que tenho aqui. Se há diferença é a de que antes não me achava encaixável no papel, porque o íntimo era pra mim aquilo que não podia deixar rastros; aí o falso dilema que nasce da comunicação pro senso-comum: se já me conhecia, até onde era possível, se só eu sentia o suor escorrer por baixo da máscara, não descobriria mais à mão do que ao travesseiro de insônia, então o formato diário-cadeado não fazia sentido; se não me conheci foi por consequência-sintoma de algo pré-verbal, se é que há algo assim que se faça de argumento, azar das terapeutas que tive, não muitas, e me pego imaginando o que escreveram nas pranchetas do pouco que disse, a possibilidade de me lerem por mim beirava à paranoia, a possibilidade de diário aberto também era impensável. Tenho registrado em uma dessas tentativas encadernadas que "sempre fiquei preso no começo da equação do eu, porque identidade é minha situação-problema", o nível do patético e da vergonha dessa frase ficam justamente no não dito: era bicha só, sofria da mais comum das incongruências da cultura pós-helênica, só não sabia; sou preto, ou algo que valha, estudarei um pouco sobre isso, mesmo que soe estranhíssima essa aproximação, a uso, e sinto que uso bem, mas tá conectada por um fio de cobre com o uso da palavra mulato, encapado por um isolamento de não lugar, coisa que só entendi a pouco, mas desde sempre sofria da mais comum das injustiças pós-coloniais, mas não sabia, me sentia sozinho. A Pressa é rival de colégio da Acumulação, amiga minha também, lanchamos juntos às vezes e a tensão é palpável, uma obriga a outra a jogar coisas pra frente e deixar outras pra trás, brincadeiras de recreio; esse procedimento pode ser visto com borra nesses parágrafos.

A segunda, primeira-e-meia talvez, é de que pessoal e íntimo são irmãos que fodem pra alguém que se propõe ao espetáculo profundo da arte, creio eu; o que me sempre travou as mãos nas terceiras páginas de autorrelato jovem, que enchia de advérbios de sufixo mente na escrita, em frequência inevitável, era a ausência de um eu que já se nulificava na performance da identidade, desesperado por espaço, panopticado pela consciência dos outros, coisa mais que comum, todos viados são virtuosi nos trópicos. Hoje, diferentementementemente, tenho algo como uma personalidade pra arrastar comigo como âncora, irreversível prisma pra ler em tangência as experiencias que botei as mãos e as obras que vivi; desde muito cedo quis recriar-comprar do éter essa espécie de alma, copiava frases dos filmes, captava certos tropos, até ser atropelado por um professor de sociologia com a definição latina da palavra persona e tudo se desmoronar em mim como nenhuma conversa de divã conseguiu ainda fazer; o assentar da poeira revelou as vigas de tudo isso que acontecia internamente, coloquei boa iluminação, fiz a curadoria de cada canto, faço dessas palavras livreto desse Louvre. O que não quer dizer que relatarei coisas constrangedoras demais pra que nos cumprimentemos ainda, espero publicar coisas piores, em questão de privacidade tenho minha nudez semeada pelas cinco regiões desse continental desprazer de país, as coisas que eu escondo do mundo, agora, são só aquelas que se escondem de mim e ainda busco; valorizo mais que privacidade o dinheiro que dispenso em lisérgicos-terapêuticos, em pincéis pra pintar da minha merda as paredes sociais desse pesadelo lúcido que é o superego arfante da nossa elite anal-retentiva, nem isso. Não sou a vítima de nada, pelo menos não posso pensar nesses esquemas por enquanto: não me vejo como calçada suja, sou a cena do crime que se comete como coisa comum, não me deixarei fecharem como fizeram com Bento.

E a terceira, mãe, filha e espírita-safa de toda essa verborragia, é de que os papéis estão trocados em relação à proposta da cadeira: os pontos de partida serão outras obras que terão as da ementa como paisagem de maratona, não sei se conseguiria fazer algo no sentido contrário com alguma diversão, não sei bem como vai ser, no momento atual de 18h45 não sei de mais nada, mas preciso urgentemente de um pouco de prazer nesse fim de década, preciso também de um diário-de-escrita mais que os ICHSanos precisam tirar fotos do céu de Minas; preciso ainda mais que Dostoiewski de laudas e laudas de coisas vendíveis, como esse tal diário poderia ser, já que, como sabem os cínicos, tá caro manter a sanidade nesse cercado onde qualquer vício é vandalizado pela beata virtude de nos manter vivos.

Então eu tento.



30 Mai - Queria um prefácio do Jacinto do Prado Coelho

A existência de uma brasilidade não me surpreenderia, encontrada em algum boteco de BR, perdida como uma matriarca com Alzheimer, e creio ter disso qualquer coisa internalizada, ou o que equivalha, quando percebo que meu superego trabalha como um governo de direita: ineficiente, pateticamente ineficiente, com os olhos e a culpa voltados pras gestões passadas, demonizáveis, construídas em imagens caricatas, vários olha-o-Lula-indo-e-vindo nos jatinhos duma sei lá se incapacidade pessoal de prender todas minhas pulsões à ponta dum hashi, puro nojo do humano que há em mim numa dessas poltronas presidenciais. Hoje minha gestão passada é ontem e o que escrevi: é da infância mesmo esse processo de três dias, já me bastam dois, não preciso mais nem de vinte-e-quatro horas, devo isso ao fato de há tempos não ser mais cristão, essa é a fé dos que demoram; é da infância também o uso de cadernos, cursiva me dá porre, a primeira correção que tenho pra fazer aqui é do primeiro item que elenquei: sou um diarista de primeiras erratas. Talvez diário não seja pra mim, gosto muito do leve prazer-gilete de apagar as coisas, reescrever, reescrevo aqui até o limite, não gosto de ter limites em ações destrutivas, mas o gênero me pede pra largar os sintomas por aí onde os deixei cair, então não posso capar essa megalomania diagnosticada.

Penso que meu pensamento é ironicamente ambíguo e que sou uma das pessoas sobre quem Paulo Coelho disse tarem presas na ortodoxia negativa das coisas, embora minha leitura da frase seja diferente da intenção dele no Roda Viva de noventa, serve mesmo assim; coexiste em mim o pronto, fruto da angústia da pressa, com o por-fazer, maior parte, um edifício em construção coberto não só por medida de segurança mas por puro asco, o horizonte da minha alma tem a silhueta duma cidade no futuro, meu cérebro me crê urbanista de mim. Falando em coelhos e em alma, se eu moesse os polissílabos e os salpicasse como Lenda Pessoal na entrada anterior teríamos um best-seller, o Ford nos autos e eu agora na auto-ajuda, sou capenga o suficiente pra me acreditar o Dr. Frankenstein dos pedaços disformes do individualismo, todo o tom sarcástico é linha pra remendar esse cadáver, o gênero é a agulha. Mais pra frente, se eu ainda concordar comigo nesse ponto, falarei da Carolina e outros que merecem a leitura dos pronomes na primeira pessoa, hoje ainda falo de mim e doutros putos que tiveram ao longo da vida muita imerecida atenção. E se pareço procriar anti-funcionalismos e anti-sociologismos literários do começo ao fim desse projeto não é pra te cativar pelos cutucões, ou por ranço à USP, que tenho realmente, nem desamor ao [⁂], com quem concordo em partes, mas faço isso porque desde que me abriguei na escrita me devo a sinceridade de assumir que não gosto de mim.

Minto, mudei de ideia e faço o esforço de manter intacta a prova atual de que sou calhorda, tô enjoado daquilo que veem quando olham em minha direção e essa rotina não me parece mais motivo literário, já é hora de colocar esse monólogo em utilidade, responder a esse pra-que-tô-aqui, fazer vibrar a metafísica dos objetivos, a começar com Meu Diário de Menina: não gosto de quem não sabe aonde vão suas metáforas e intenções, pelo menos as de motivação sincrônica, acho que a ironia é um prato e os melhores chefes sempre provam primeiro, ou melhor, não gosto de ler quem não tá estrábico ainda pelo uso da força na pálpebra, consequência de uma leitura diária da realidade; essa coisa de espontaneidade me dá no pé, talvez um trauma travado na convivência com os supracitados beats, cheirando ao capô da máquina de escrever, justificando a falta do que dizer em algum surrealismo que entrevistaram no asilo, talvez seja a depressão, me impedindo marejar os olhos com as miçangas líquidas do Mia ou semelhantes, mesmo nesses casos com motivação eu tendo a fazer muxoxo quando se joga damas com peças de xadrez, então espero que esse livro tenha sido escrito pela Helena depois de velha e o vou lendo pelas bordas dessa premissa. Não que o significado seja um cão levado ao parque (pra abandonar, de óbvio) ao qual se possa assoviar pra ter de volta ao colo, não é isso que eu quero dizer, conheço a teoria, o significado é aquele filhote de pombo que cai do ninho, é criado a fubá e não volta, pra nossa sorte, e voltando, porventura, por azar, é enxotado como foi a mãe, o pai e toda a parentaiada; porque pombo velho é só pombo, enquanto perdoamos muita coisa sob a égide da infância. Uso o plural dos dizeres místicos, mas não me incluo, eu não perdoo nada, eleito [⁂], como colocou Joyce, c'est le pigeon, Joseph? A citação não serve de nada [⁂] mas a metáfora é boa pelas lacunas: às vezes o filhote morre, acontece, viver no terceiro mundo é saber que só fubá não é escolha que se faça, aí voltando pra infância, se temos alguma próxima a nós enterramos aquela massa rosa, cerimoniosamente, ouvimos os choros, choramos quando somos nós mesmos os infantes, e o mundo é goiabada e pasta de amendoim; se não moramos com crianças, portanto em paz com a secura do frio, embrulhamos aquilo em duas ou três sacolas plásticas e jogamos no lixo mais próximo, agradecemos ao cão sem que ele entenda a gratidão que o temos por ser velho, inepto, reumático e cego, a não sujar mais o nosso quintal com qualquer coisa que caia nele (sangue de vertebrado tem uma coisa com rejuntes), e o mundo é boletos e pornografia. All at once, de forma não excludente; haja lixo e chão.

E o que eu quero com tudo isso? Nada, o que quer o significado com as coisas? Nada. Fora isso gostei do livro, fico teorizando o porquê de ser tão desconhecido, não chego a nada; talvez se fosse do Paulo Coelho ou do Coelho Neto as coisas assumiriam uma hombridade comercial, só pode ser piegas quem poderia ser interpretado pelo Seymour Hoffman: eu, por exemplo, não passo. Lerei na integridade quando tiver mais tempo, parei em 10 de Junho, foi mais por fome que qualquer outra coisa, mas cavei retórica sozinho pensando em Recherche e nas madeleines, comendo minha maisena com margarina forçando associações livres ou que quer que seja inconsciente na memória, nada muito bom, nem toda introspecção tem o sabor sardônico da culinária francesa; tenho histórias como essa da banha sem sal, nunca respeitei coisas escondidas, qualquer castigo que eu já não tivesse colocado em mim masoquisticamente era OS de furtos e espionagens. Aí chega o limite da proposta, a placa limítrofe dos municípios Pessoal e Íntimo: relatar primeiras vezes, como as primeiras revistas, não playboys, mas daquelas que o titulo começa com sex e termina em caixas postais de casais combinando swing, ou o que crianças fazem no banheiro masculino, com outras crianças, por muitos anos, ah, não se preocupe, paro aqui, não haverá tempo pra isso mas nos forçarei a termos quando o retorno desse recalque me tirar a alfabetização.

Acho que o que eu queria dizer, antes de banalizar o argumento, é que não me satisfaz qualquer literatura pré-sexual, como se esse mundo realmente existisse, essa coisa Pequeno Príncipe que não faz bem pra ninguém; é lógico, existe literatura pré-sexo, não me leve a mal, mas ler Freud me deixou muito cedo de mal humor, nunca tive experiência com cigarros sem a metatextualidade do pênis ser parte do prazer do tabaco, se infiltrei Hilda no início é um indício dos motivos. Muita coisa fica latente na escrita da Helena, o que pode ser dito do que eu disse é: ué, tá lá, é só anotar a primeira coordenada que o resto se encadeia; nesse ponto volto pro tempo, não pude ler com dignidade, mas não vou reclamar da academia, o lugar-comum também é um pombo e eu sou urbano demais pra somar a isso, sei das doenças que prolifera, sei que veneno comprar. Escrevo de memória também, além de escrever da memória, por isso não dou mais detalhes da obra.

Golpe! A oposição-superego toma conta, tá tudo errado isso tudo que tá aí, talkey, antes que tudo seja jogado no lixo um parêntesis sem sinais gráficos. Talvez eu odeie a infância por traumas nela mesmo, chega de culpar a influência dos universitários na minha psiquê, os universitários no século XXI não tem poder nenhum de influência, nem entre si, e se eu já consegui avisar minha mãe que sou a fruta podre do pé do conhecimento, senão maçã então manga, me amassem, furem e bebam, pra a deixar despreocupada com o que o mundo pode me fazer, devo avisar a mim mesmo a mesma coisa a nível de mantra quando começar com essa conversa meio mole. Sobre o 1º de Junho dela: acho que tinha O Caráter que ela leu, livro vagabundo, Augusto Cury até a encadernação, comprei no sebo pelas imagens, decorei o quarto da antiga casa que a minha república morava, muito disso mofou, encaro como intervenção poética mais que problema sanitário, mas pode não ser o mesmo, o meu falava sobre drogas também, não tenho de cabeça a historicidade desse tópico, só sei que não funcionou; acho Verne um porre, junto com Tolkien, não tenho culpa pela chatice da sublimação dos outros e, com ênfase no segundo, morro de preguiça de linguistas; não sei, achei bonita essa entrada, é pra mim uma síntese inocente do que vem a ser o liberalismo cristão semi-letrado que no Brasil é lei, Paulo Guedes e cia. Já sobre o meu: fica o cliffhanger.



31 Mai - A fórmula da água 

Me manifestei a contragosto. Listarei depois os nomes dos ansiolíticos que tomei antes de pisar na cara da calçada; ao que parece, o Óbvio, senhor soturno, como qualquer pessoa nessa república da desgraça que é realmente injustiçada e precisa de assistência, não consegue pagar advogados e precisa de defensores públicos. Sei, cansado de saber, que há muito a se dizer sobre o que perpassa o discurso do óbvio e dado, coisas que pedem o uso maiúsculo da palavra Ideologia, mas acima de cansado tô exausto desde Outubro, a última vez que considerei doxa e usei em voz alta tava em um domingo especialíssimo, estourando as caixas com o coral do exército vermelho, depois disso morri.

Antes de seguir, uma verdade: sou comunista desde criancinha. Antes do manifesto, na oitava série, era tudo de pachorra e divulgação científica, socialismo de revista Recreio; não, não, mas o real é mais clichê que isso, tenho que abusar de perfumaria, e pra provar que li Freud, pelo menos o básico, vou organizar essa coordenada com "o que teve início com o pai se completa na massa", ao que acrescentarei o título da história de fodido industriário que é dele, meu progenitor: Alcoolismo, Ou Porque O Vazio Que Abasteço No Bar Está Relacionado Com A Expropriação do Trabalho. Não que eu goste de o colocar como vítima, apesar de fazer isso, inconfortável, diversas vezes, traçando os vícios e diagnósticos psiquiátricos que fiz na altura do meu CRM de tão-louco-quanto; alcoólatra, machista até as beiradas hemorroidectomáveis do fim do cu, [⁂], não cumpriu seu papel castrador sendo por si um castrado pelo patrão, sendo por si um brasileiro desses que me torram a paciência no Jardim falando esotericamente o quanto a Vale deve a eles, o quanto lhes valia serem reconhecidos, cuspo mesmo vendo razão, me pedem notas de dez pro crack ao que respondo: toma vinte, trás pra mim. É claro, piada, eu nunca tenho vinte reais sobrando e se eu tivesse eles não voltariam, o humor é escoamento pra angústia, ao contrário da Vale eu chequei e meus drenos ainda funcionam. De um jeito ou de outro a motivação tá aí, quando eu falar da massa dá pra voltar nesse parágrafo e me colocar no colo do subjetivismo de que recuei na última entrada; se o modo de produção não tivesse quebrado um homem até o deixar incapaz de antagonizar seu filho de seis anos, pode ser que eu não fosse bicha, here's the T honey, quem sabe assim os stalinistas me darão uma colher de chá cheia do visco-Lete leite-macho de esquecerem de colocar meu nome numa gulag-rosa pela traição em direção à política identitária, se tudo volta pra luta de classes posso me proporcionar férias pela pena, polissêmica, de profundis, [⁂] de clinicamente insano contribuindo à causa uma broderagem de cada vez, me dirão "draw me like one of your french workers". 

Até aí tudo bem, escrevo como modo de dizer, a função fática começa a fazer falta. Pensei em sumarizar minhas leituras marxistas mas me pego na culpa de não ter terminado Das Kapital tendo já citado muitos calhamaços, fica por aí, li o que deu pra ler, li o que eu quis e não faz falta nem faria, distribuo panfletos na tenda do anarco-sindicalismo, poemas pobres, do lado esquerdo das freiras histéricas, em frente aos sodomitas, perto de todas as caricaturas que compactuam em colaborar com um cadinho de verdade, nada sóbrio resumo em haikais a complexidade da luta de classes e mesmo assim ninguém lê. Que a esquerda dos apitos não tenha ouvido meus murmúrios na rua e visto a confusão sinestésica-nevrálgica que demonstrei apesar de todo amargor na garganta, pelo menos tive ritmo nas palmas e essa contribuição foi dada por poucos dos companheiros: somei; ademais, vivi uma vida de defesa, vivi uma vida de grêmio estudantil antes de me graduar a CA e mesmo depois dessa gastação de onda nas reuniões de conselho, depois do fica-ufop-Mariana, depois de não conseguir nem sair de casa, o ar que eu tiro dos lugares que ocupo tem a força cinética de ação política. 

Li o diário de leitura do [⁂] no período que ele fez a sua cadeira, acho os apontamentos que faz sobre São Bernardo válidos, pulei o conto de anacronismo, me falta essa mordacidade que ele tem, me falta um pouco do pieguismo também, não sei, na tentativa de não te entediar vou colocar isso aqui como preâmbulo das minhas próprias tagarelices; acho que ele foi muito duro com a Helena, acho também que foi falta de tempo, o diário é um gênero de uma perna só e só fica em pé com a muleta devida, que é o interesse pela vida do autor; tudo isso justificando minha fuga das obras, o holofote que me segue, imagine que cito todas agora pra me emendar em mim mesmo um pouquinho a mais. Encontrei com ele na manifestação, competimos averbalmente qual apatia era a mais apática, acho que venci, mas não sou o melhor juiz nisso, sei que ouvimos a palavra socialismo uma vez, quase como um blefe em frente à prefeitura, depois na praça do showmício, tirando o slam da mina, nada produtivo, quase difícil dr assistir, veio disso; que fique nos autos: é um ano difícil demais pra se dar ao luxo de teorização e sectarismo, todo mundo se sente meio filho de alcoólatra e todo artista é meio borracha-fraquinha.

Continuando, não tive uma infância muito boa, coisa dita, nem muito sociável, nunca gostei de futebol porque meu pai gostava, não aprendi a andar de skate porque caí uma vez e porque vivi economicamente num limbo entre condomínio e rua, então não tinha onde andar, não participei de qualquer outro esporte mas gastei minhas calorias em calorosos debates desde muito cedo, se as moiras da depressão clínica e seus distúrbios não tivessem cortado tão rente as meadas da minha memória, eu poderia dizer que discutia minha existência desde que existo; se posso dizer que não sou o sal da terra é só porque sou homem-cis e filho adotado do que sobra da mais-valia da indústria, com não tão pouco como com o que vivem a maioria dos brasileiros. E isso é o que eu acho mais anti-terapêutico sobre viver essa vida de militância, comparar desgraças é injusto mas é tudo que se é permitido fazer, a constatação de que tem gente mais fodida que eu me faz soltar um puta-que-pariu que nem a radfem dentro de mim, como um rei na barriga, internalizada, tem tempo de corrigir da boca esse slut-shaming; a constatação de que, na verdade, quase todo mundo menos os caras brancos que me dão tesão culposo tão mais fodidos, numa baixa pior que a minha, é a treta real. Antes das dos fascistas, deslocarei as mandíbulas de quem tiver a coragem de me dizer, frente a mim, que é fácil não odiar o Brasil, e antes dos genocidas, dos ditadores, do caralho a quatro das desgraças demais que se coloquem como coisas pro juízo moral, quero condenar quem me tira o justo direito de me sentir exausto de tudo isso. Deve ser gostosinho demais ter crises de pânico em Amsterdam, sofrer na Suíça inteira; fazer o Jean-Snow-Jon-Wyllys no final de temporada, peles caras e norte, chorar feio numa entrevista com o mais patético dos enrustidos da Globo; enquanto, do outro lado do Atlântico mas não aqui, até fumar cachimbo histericamente tem mais dignidade. Às vezes tenho acessos de olavete, de tanto defender Paulo Freire pra quem não leu, não tendo eu mesmo lido a maior parte, todos os dias, de tanto me colocarem nessas banquetas de vai-aí-e-fala-ocê-que-estudou-isso pra ser relevante de alguma maneira, de ter que usar a minha cabecinha privilegiada em nome dos filhos dos fodidos que davam tapas nela por eu ser esquisito na escola, de engolir a dignidade e o tempo com a fala dos outros em intermináveis assembleias, de tanto ter que me preocupar aos vinte anos, tô o pó, no mal sentido, e é de cair o cu da bunda.

Falando em entrevistas, conforto o meu ego imaginário imaginando as que darei depois de publicado, respondo cada pergunta de cem maneiras diferentes, menos uma, a mais frequente, que é "por que você escreve tão difícil num país com x analfabetos e transbordando de entraves prévios à sua compreensão? Você não tem, por trás de todo o malabarismo, alguma mensagem?" Ao que eu respondo sempre, tremendo o corpo como em um sonho canino: vai se foder seu pseudo-intelectualzinho de merda, se foder, e que vá a merda o Brasil junto c'ocê, acossado da porra, galalau do caralho, zé-jornalisminho, te parece que agora eu tenho que ser o padre Vieira dessa merda? Chegar de caravela na periferia e beijar a testa dos pretinhos? Não é absolutamente patente que esse paternalismo sapioso de culto aos mais humildemente sabidos é um ranço colonial? Mais uma vez confundem esquerda com maiorem hac dilectionem nemo habet, ut animam suam quis ponat pro amicis suis, não sou mártir, avisei meus amigos pra se virarem, disse aos suicidas que mijaria em suas raízes quando passasse pelo inferno, esse país me deve as ceroulas da sanidade, minha escrita não é devolver nada pra nada, é pressa, é sublimar o tráfico. 

Muito infantil, não? Me permito um pouco disso, de vez em quando, resvalado pelos laudos médicos. Cheguei hoje no teclado com a vontade de colocar na tela um "mais que muito sinceramente que se foda a educação pública, minha luta diária é sair da cama, Bolsonaro, tira a tesoura da mão e põe no meu rabo, que diferença faz?", mas até isso é demais, quem sabe pra terapeuta serve, quem sabe prum caderno de espirais mofando na casa da minha mãe, ou [⁂], mas pra vida não, pro meu emprego de me importar não, então bati as palmas, caguei xingos na polícia e só me deixei rir um pouco depois de comprar cerveja no Jardim pra encarar de cara torta mais trabalhadores se entorpecendo de sei lá o que tá mais barato. Brás Cubas é quem eu queria ser, ao contrário da crítica do [⁂], eu seria o Brás se fosse branco, sem parar pra pensar, nem subir no hipopótamo eu ia, antes de fechar os olhos fechava o cu e me jogava numa vala pública.

Uma anedota com moral definida: tava eu, depois do Coral do Exército Vermelho, embriagado de coisas que eu nem posso listar depois, nem criar charada, numa república vizinha assistindo a posse do atual presidente, e álcool vai, álcool vem, veio mais gente, veio violão e eu nem liguei, era dia de bacante, era muito medo pra não perder qualquer preferência em nome de qualquer, capenga que fosse, sensação de pertencimento. Conheciam, no sentido pessoal de conhecer, Francisco el Hombre, então começam Triste, Louca ou Má, que eu sempre achei um porre mas não mais porre do que eu já tava, então cantei junto, todos cantaram, coisa de nouvelle-vague, incompreendida juventude, enfim, fiz muita descrição já, que venha o clímax: o anfitrião cortou a onda de todo mundo porque naquela roda só tinha uma mulher e que por isso a letra ficava estranhamente num tom tenor.

A audácia, a coragem, a hybris desse comentário. O completo despropósito me colocou de volta a algo primo da sobriedade, deitei uma vista violenta na direção do violão, violentando a imagem do samba pensei ser esse o instrumento do vazio interno, um oco que se repete. A mina presente  também achou, sem falar do que ela disse sobre a própria voz no assunto, também cantando, talvez a mais feliz de nós, pensando na conjectura da coisa toda, sendo sugada também pra fora desse conforto tão necessário, disse: cê tá sendo muito desproposital. No fim, a moralidade anedótica que premeditei que haveria de haver, a cena, saiu da minha boca em "ah, é sóbre o sofrimento feminino, entendo agora, nem vi a letra, tava tão louco que achei que era branco e podia curtir o que eu quisesse, precisava disso, não me arrependo'.

Além de mim, na roda, de preto só tinha o [⁂¹], muito mais pra lá de Baghdad que eu, convidado por mim pra usufruir as drogas dos caras, não ouvia nada, só esperava a próxima música, ainda sentia aquele conforto e falta de noção de onde me tiraram em nome do bom discurso. Cheirei o dobro depois disso.

Os playboys choraram as próprias mortes premeditadas, pois progressistas, pois mamando cacetas no sigilo. Houveram os quais tenham escrito de punho, em cadernos espirais, cartas chorosas às famílias bolsonaristas enquanto [⁂¹] e eu nos entreolhávamos (todo o desespero passado, tudo que pudemos fisicamente sentir enclausurado pra sempre na primeira hora de fogos-de-artifício), pensando com não muita seriedade o que seria de nós agora que, diziam, esses aí também eram dos nossos. Ficamos bem.

Atenciosamente, uma Paroxetina 10mg, meio Zolpidem 10mg, ou seja, cinco, um benzo pra dar uma quebrada, e muita, muita, maconha.

Tá aí, acho que falei da massa.



[⁂¹] veio a falecer em Outubro de 2020. Os boys passam bem: passaram bem, relativamente falando, todos esses quatro anos; o que era previsível; ao que me importa.

2019/2023
maio

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