conforme a forma


A tarde é baixa. A carne crepita na churrasqueira abandonada, sonorizando alto nossa falta de fome. Já fazem horas, nos desfazemos. É coisa de versão-forró pra mais e tem algo no tempo que é lento. Tem algo na noite que vem vagando.

O Clark ─ sim, foi piada-constante na época da escola ─ tá aí, a gente tá bebendo, nada muito novo. Cerveja, o calor já cortado pelo vento que vem da noite, contatos valentes. O foco nos escapa, o céu em fogo-baixo nos esconde os olhares por sob longas sombras: como sói acontecer. Nos olhávamos. Cruzamos-olhar várias e várias vezes. Sem incômodo. Sem aquela coisa de regrar intervalos.

Pelo adocicado metálico do malte minha fraqueza me toma por debaixo dos fundilhos enquanto percebo os do dele no pressionado do tactel, longe porém visível. Clark, ali, deixando que o ar lamba de si o cloro da piscina numa palidez opaca. Em pé, antigravitacional. O tátil da densidade das estrias do tecido esticando, o tensionado de certas partes, a característica de carne…

É meio difícil entender o monumento que o cara é, que ele se torna; momentos como esse. Lá pra casa dos centevinte quilos de presença, um puro animal de carga, um corpo fibroso, do mesmo desnecessário e supérfluo de que são feitas as coisas pelas quais se vale a pena viver. Duma outra solidez que a dos homens.

O deltoide posterior não só agigantado como também abraçando o extremo-superior dele como as quinas das capinhas da CAT pra iPhone — é só assim que dá pra nomear, como se ele fosse uma coisa embrulhada por si mesma. Os braços, dois pães sovados, roscas-de-padaria. As cordas das costas e do torço, ainda que por baixo duma camisa larga, se delineavam uma forma com seus nós. Duma construção que rivalizava mesmo a dos ossos. Ele todo é ele reforçando a si mesmo em camadas de grossura.

E, mesmo assim, de alguma forma, implorando ─ sem nada fazer, quase sem maldade nenhuma ─ ser medido. Aquela coisa de existir pra experiência externa, sei lá. Talvez fossem os olhos. Ou o sorriso, daqueles que se prendem antes de soltar: um lado depois o outro, com a tensão em rugas se transferindo dum hemisfério pro outro do rosto quadrado.

Do joelho pra baixo o homem sendo só o pernil de desenho animado e, onde seria o osso, onde o neandertal caricato ia segurar a peça pra poder tirar sua lasca, bem no branco da ligadura, um dos pés do mundo, senão o: pelos cobrindo o peito e o meio termo de cada um dos dedos, tendões estriando a estrutura toda em direcionais de ação. As tiras das havaianas só sugestionando a capacidade de poderem sustentar esse portento suporte. Ele sendo o limite de carga que transforma o maquinário moderno de transporte em não mais que tecnologias experimentais. O teste certeiro da estabilidade de estruturas verticais.

Cheguei por trás, no ouvido, e com a voz calculada nesse segredo que é nosso, mandei a mais-que-velha:

'Me libera esse atrás'.

Como quem tivesse ouvido alguma coisa completamente diferente, Clark me apresentou pra com quem ele conversava até então:

'Essa aqui é minha amiga, Sabrina'.

E Sabrina contando sobre como ia a faculdade que fazendo. Me oferece meio 'oi', conforme fecha, incomodada. Cortei qualquer coisa. Pergunta quem eu sou; digo qualquer coisa, também. Clark, aí, completa com os meus dotes. Coisas banais, produtos, feitos, prêmios. Pedindo confirmações mínimas minhas depois de todos os 'né?', como quem prepara um seminário.

Sabrina, recém-interessada, recompondo a expressão corporal de quando antes de eu chegar e ela ainda não querer ir embora, quer saber mais. Mete um 'ah, então é esse aquele seu amigo'.

Sou eu quem dá fuga.

Dou um dez no banheiro pra encenar que era isso, aproveito pra medir a ressaca de amanhã no espelho de hoje. Quase esqueço o Stanley na pia. Percebo que tá vazio. Percebo o tom negativo que eu dou pra essa afirmação neutra. Vou dar caça.

Reabastecido mas ainda no pé do freezer, procurando onde pousar, Clark me intercepta, perguntando,

'Mas tu não era bi?'

'Tô de-saco de falar de livro como se fosse assunto'.

Um olhar dele de 'e não é?', um meu, de volta, de 'é não'.

Talvez um ressentimento se formando na demora em formar uma resposta vozeada pro que eu disse, talvez. Problema dele. É coisa de quem tem emprego fixo invejar o artista por sua 'admirabilidade' em festinhas e agregamentos, e é coisa de quem só é pago com admirabilidade entender que isso não é um emprego fixo. O que eu tive que fazer pra chegar com esse fardinho não tá em zine nenhuma. Tá bom que eu vou deixar alguém gastar uma gota disso de mim.

'Ela te achou meio babaca,' o Clark.

'Coisa que eu tô cagando muito'.

'Feia?' É a explicação que ele tenta achar.

'Chatinha, pior que ocê, próximo assunto'.

'Que-que cê tinha falado aquela hora?'

'Só saudades do seu rego', a gente nunca transou. Diz o costume e todas as pessoas que conhecem a gente que o Clark é hétero restrito e sossegado. O que nunca significou muita coisa, independente de qualquer concessão de diálogo e posição fadassensata.

'A lei é quem tem o rabo maior' ele falou; como se revidasse, sabendo que não.

Modéstia à parte, a minha bunda carrega a possibilidade do argumento, mesmo em comparação com a dele, mesmo com nem um quinto da dedicação ou dos aditivos. Que seja justa a partida não é significado de vitória, no entanto. É olhar duas vezes pra perceber que o que me falta é altura, só. Ele teve anos pra compensar o próprio tamanho.

Era não senão uma desculpa pra que medíssemos, mais uma vez, que ele falasse isso. Como ele fala, volta e meia. A mão veio em posição de repouso, passando na minha nádega próxima, medindo o peso com tapinhas de ponta de dedos. O calo-de-ferro na mão dele engastalha no sintético do meu short.

Só sei que a coisa ficou imediatamente inadimplente quando com a minha eu fui revidar direto no meio: a leniência do tactel, a rigidez dos dois lados do sulco me derretendo pra dentro como uma gota de suor. Sem cueca. Quente.

Não como antes, ele não deu aquele saltinho. Saí pra esconder com a posição mais manjada de todas ─ uma mão segurando o pulso da outra ─ a puta ereção que aquilo erigiu no mais parassimpático de mim. Inapropriado pro horário.

'Critério de desempate é o tamanho da vara' eu falei, percebendo que percebeu, seguindo meus furtivos.

Isso só significava uma coisa. Ele nega com todas as letras, patolando imperceptivelmente, ou não, a mala, que é mais saco que pica.

Guiza de mudar de assunto ─ última coisa que eu tô precisando hoje num rolê desses é sinalizar disponibilidade da cintura pra baixo ─ pergunto dos projetos dele. Ele percebe o desvio, muito óbvio, inclusive, porque papo-projetos não combina com minha cerveja, como eu mesmo demonstrei. O assunto volta.

A gente conversa e desconversa se encostando, mãos nos ombros, percebo isso. Sim, é uma assanhação. Sim, todo mundo percebe também, mas abstrai pra outros rumos. Eu sou uma figura séria, apesar de uma figura devassa. O cara se fez inquestionável e eu me fiz inacessível, uma soma que no exagero não se fecha pra diversão nenhuma. Não é bem diversão o que viemos tendo, 

'.. verdade é que cê esparra demais, não por questão de falar, mas mexer c'ocê é do nada aparecer no meio de assunto, galera vive de especular sua vida na real'.

'Tô ligado' respondo e só respondendo eu percebo o que é que isso quer dizer ─ não é nem que eu seja inocente, hora nenhuma, é que não é um dos melhores momentos da minha vida, esse momento ─, 'mas a essas horas já era, cê já tá no prelo, bora sair no lucro'.

'Comia fácil'.

'Como se eu fosse'.

'Pra mim é'.

Sou adepto da verdade e confiança me quebra as pernas.

'Não trabalho com treino, tem que largar dentro'.

Ele me olha com um rosto de fazer a última trombeta soar como só a penúltima, sim. Ele desconhece Caio F. Abreu pra me reprimendar. Tem um tipo de cara nesse mundo que trabalha só com o simples. Acho que às vezes eu procuro por mim mesmo só que meio.

'Até a tampa,' no meu ouvido.

Pergunto 'mas e a Raquel?' Raquel sendo a mina dele. Raquel muito menos que nem-aí, muito menos, tava interessada até. Das vezes que nosso humor chegou a alcançar os ouvidos dela, seja por descuido, seja ousadia, só o que ela dizia: nem me chama que eu não aguento, mas se eu puder assistir; reticências. Começou assim, na verdade. Isso sim: assistiu muitas vezes, o celular entre eles enquanto eu mandava.

'O que tem a Raquel?' 

É. E o que tem a Raquel? Raquel, inclusive, trabalhando com marketing 'nicho black' do Facebook, coisas de saúde sexual feminina ─ enfermeira formada ─ e sendo, talvez por isso, ou pra além disso, muito bem resolvida em termos de transa e métodos. Ela tinha os dela, ensinava ele; e subentendido nisso o caber de que apesar de tesudo eu sou pouca-transa. Nada muito difícil de achar.

'Não ia complicar o rolê d'ocês?'

'A gente já trocou essa' e, sim, a gente tinha trocado. Demais. Eu me debasava pro meu amigo e pra mina dele, coisa normal, não mais do que não ter vergonha na cara e a leniência educada e consensual de ser bonitinho e muito dum pilantra. Quando não, quando eu me dei real conta, eu me peguei em visualizações únicas. Daí pra frente ela lavou muita louça pra fotos e vídeos do meu nicho black, coisa de bolhas que fazem barulho quando estouram.

Marés e caldos, das vezes que eu trombei com a Raquel depois dessas coisas ela meio que não sabia onde se enfiar. Foquei um tempo nela porque o Clark tava naquela onda de fingir que não acha pica uma parada esteticamente bonita, mesmo a minha, apesar das comparações elogiosas e quasi-poéticas do meu pré-gozo à viscosidade natural dos monossacarídios, apesar do apelo ao tamanho, o elogio das formas, os o-que-eu-faria-se-fosse-minha, os silêncios prenhes de quando eu respondia 'mas é', tudo bandeirava. Não só porque parte do meu prazer é entrar na mente, fiz de contornar o vazio com análise. Mostrar pra Raquel era mais que motivo pra que ele pudesse ver sem me falar.

Depois descobriram minha bunda e foi motivo o suficiente. Com isso a paranoia dos boatos. Não teve Naninha, não teve aquela da Valeska. E-transa é transar, aparentemente. Mas no pessoal a coisa se constrói diferentemente, ainda coisas por explicitar. Verdade é que meus fracassos pessoais e mil-coisinhas me distraem. Verdade é que quase não pego quando ele fala:

'.. aí deu de que essa Sabrina tá meio de amante da Raquel, cê bem falou que eu tinha vibe de cornão'.

'Como assim?'

'Como assim como?'

'Como assim corno?'

'Tenho nada com isso mais não, ela é lésbica'.

'Então eu fui babaca'.

'Difícil cê não ser'.

'Dahora'. Ele tava sorrindo quando disse, mas não eu quando respondo. A ausência da Raquel e presença da Sabrina nesse rolê meio que explica porquê que o esparro putativo dos boatos não é o suficiente pra comprar afastamentos depois da introdução. Ele tá deslocado. O que despolitiza um pouco a insistência e me deixa mais tranquilo. Meu short já volta a cobrir a base do meu vasto-medial. 

'Mas não era nisso que eu tava querendo chegar'.

'...'

'A gente entrou no acordo que eu tô num lucro aí'. Fazer o Clark se assumir bissexual é um dos projetos de casal da Raquel, pelo o que eu sei. A leniência veio um tanto disso quando começamos. Sei onde ele quer chegar com essa. Minhas coxas passam frio de novo.

'Então o mínimo que cê pode fazer é me oferecer uma carona pra casa'.


2023 agosto


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