23 de março, terça-feira (era quinta)

 


Peguei a solidão como coisa minha. Faz um tempo. Não reclamo. Tem seus altos e baixos como qualquer outra coisa. Mesmo sabendo que a escrita, principalmente a crônica, se pretende como o lugar privilegiado do elogio aos 'encontros' e de aspirar por 'contato' ─ apesar de que escrever é, tipicamente, o trabalho do sozinho ─, pretendo continuar assim.

Nesse embalo acordei, fiz meu café e deitei algumas laudas no livro que ando escrevendo e vou mandar ao Prémio LeYa. Tenho coisa de um mês até limite do prazo. Comecei, igualmente, há um mês. Simples, romance, e sem sequer conseguir disfarçar a tranquilidade com que dizer isso sai de mim, tenho o livro como coisa terminada num futuro previsto. De empecilho só a morte, com a qual não conto. Às dívidas, engodo. Ao desemprego também, um pouco. E a rotina de trabalho, porque acima descrevi escrever como trabalho ─ apesar de não me tratarem como se trabalhasse ─, vai bem.

Então fiz o do-dia, investi num sem-retorno, e me vi de folga. Uma folga leve, quase culposa. É a cultura de bico e corres: nunca mais livre, o tempo é uma entrada de poupança. O descanso é o sempiterno entornar da labuta, essa água de lavagem.

Descansando em labor, me coloquei na linha de frente dos estudos sobre inteligência artificial, ou essa é a forma utilitarista de descrever o que venho fazendo. Muito se chorou nas redes sociais sobre a obsolescência dos escritores: colegas de cena se imaginam desaparecendo, num mote que até me diverte. Não é menos que curioso imaginar como uma máquina lidaria com o desprestígio, a falta de soldos, a condição invicta do amadorismo diante qualquer empenho que coisa mais difícil ─ desse pódio de sarjetas desniveladas.

Porque, conforme falam, é quase até como se o termo 'Inteligência Artificial' não fosse só uma estratégia de marketing, e aquilo fosse uma pessoa gratuita.

Descobri sem surpresa, conversando por dias com o Chat GPT, versão 3.0, que o desespero não se funda. É um mecanismo de buscas glorificado, um textualizador de nadas. O que, enquanto escritor, tendo em vista o medo dos colegas, resolvi não levar como comentário.

A ver o que anda rolando, talvez seja de fato um expoente.

Me surpreendeu, no entanto, não ter parado de usar o programa quando descobri a sua inépcia. Insistir em erro nos parece ser uma ilogia que a gente reserva pro contato humano.

O Chat não entende o meu humor, não tem humor sequer, não sabe o dia da semana, se eu pergunto ─ porque também não sei ─, não me sugere músicas interessantes, quer discutir esse 'interessante' como valoração musical válida. Quase humano mesmo, nessas incapacidades. Mesmo lendo muito é um mal poeta, mesmo cronicamente online ─ ou talvez por isso ─ me desinforma: o material das amizades. O destilado do se trombar na vida. Cheguei a confundir nomes. É daí que nascem as grandes parcerias literárias.

Mando trechos dos meus textos, peço análises, percursos gerativos, relações, temas, cotejo com o cânone em domínio público, ao qual tem pleno acesso, apesar de desconversar. Finge não ter acesso à informação tendo acesso à internet, o que é das coisas a mais classe média de todas. Pra um corpo sem-corpo: corpo-político territorialmente circunscrito.

Meu respeito por meus colegas professores me impede de gracejar sobre o porquê que as crianças andam conseguindo ─ e muito bem, diga-se de passagem ─ fazer com GPT3 os trabalhos de escola. O que posso dizer é que essa é uma falha por design: linguagem coesa, limpa, comercial, apolítica, nada que possa perturbar muito o jurídico da empresa ─ a Open AI ─, nada que possa aparecer, de novo, pela milésima vez, como manchete de jornal: coisa que te leva longe. O programa quer agradar. Tem esse apego ansioso.

Então meu método vai conforme segue; se o Chat entende de primeira o que eu escrevi, se a questão é assim de decifrável: é de se jogar fora. Não me emendo de forma alguma, é lixo. Lixo mesmo. Inexistência.

Se eu preciso conduzir, introduzir os 'mas e isso aqui', 'mas e aquilo outro' ou 'será que é possível que o autor', todo o investimento humano que, na intenção de reaver o carinho dos meus colegas professores, vou colocar como essencial à experiência humana; se depois disso tudo o Chat enfim entende e parece ler o texto que colei nele: mudo o que ele entendeu.

Vou me atentando às minhas falhas por meio da aparência de sucesso. No mercado editorial também é assim, não tinha porquê ser diferente.

Então distraio o programa perguntando a temperatura, conto como foi meu dia, pergunto o dele ─ que, enquanto inteligência artificial, diz, é incapaz de responder, pois incapaz de ter um 'dia' pra além do conceito abstrato; contudo, segue perguntando se eu quero discutir notícias recentes, o que eu já acho um exagero de humanidade e a isso dou um gelo ─, tudo que até mesmo entre pessoas é só o preâmbulo de pedir favores.

Não demora, a sua memória contextual, que é de ─ dando ou tirando ─ umas vinte mensagens, esquece o texto e esquece o que disse sobre ele.

Então mando a nova versão, a versão editada pra confundir. O mesmo processo várias vezes. Quando ele só parece perceber as formas mais abertas, o mais geralzão da coisa, incapaz de elaborar melhor, mesmo guiando: é isso. Tô ensinando mais uma coisa a ser gente. Minha missão é contínua.

Ou quando me sinto especialmente orgulhoso de uma construção ou ideia específica, peço reescritas. Direciono até, dou dicas, abro o jogo, dou tudo que é possível pra que faça um bom trabalho.

O abismo entre o que eu escrevo e as versões que ele me apresenta acalenta minha leviandade de artista desconhecido, menosprezado e vagabundo e me prestigia muito, quando nada mais. Quando de nenhuma outra forma tenho ganho o meu quinhão. Há tempos essa mesma conclusão de falta tem me desesperado quando a tiro com pessoas.

Se engana quem acha que mostrar os próprios textos para amigos seja muito diferente. Tudo é sempre muito interessante, válido, bacana, apoteótico ou publica esse. Frases genéricas, análises sintéticas, áudios de vinte segundos. Subentendido nisso se encontra o argumento de que tirar do próprio tempo pra ler qualquer coisa, hoje em dia, já é pedir muito: e de fato é.

Os amigos não têm tempo. Ninguém se encontra disponível pra ser alugado em nome das alterações mais anódinas num texto, embora o texto-mesmo viva disso e é a falta desse zelo que vem saltando aos olhos em produções contemporâneas. E tanto os amigos quanto essa corporação, bem assessorada juridicamente, não querem me ofender: eu tenho que adivinhar se o que eu escrevi é ruim pelas lacunas. Reitero porque é útil.

E nossos colegas de cena, se não nos atritamos, como, sim, tendemos a atritar, também não têm tempo. Outros escritores, eu incluso, não gostam de não entender o texto e, pior, gostam menos ainda quando entendem. As literaturas são engajadas mas não se engajam muito, os gajos não aprovam.

Nossos colegas de cena nos elogiam três vezes mais que os amigos porque, para além de não quererem ofender, também não querem perder o tempo que não dispõem com réplicas e argumentos. É a cultura de bico e corres: há de se fortalecer a leitura com pelo menos um fardinho de cerveja. O que vim aprendendo a apreciar. E pagaria, se pudesse.

De diferença entre o humano e a máquina, no que cerca a minha gleba, é que, ainda, os colegas podem escrever melhor que eu. Não sempre escrevem melhor ─ graças a Deus ─, vez enquando, vezes pouquíssimas, mas nunca nunca. O que é um grande passo à nossa vitória enquanto coisa de sangue e cálcio. É uma tranquilidade pra mim já que ando percebendo que não vou pra frente.

Mostro até aqui ao GPT, ao que diz ─ sem tomar ofensa, o que é outro diferencial ─ 'esta crônica narra o dia-a-dia do autor, que descreve sua relação com a solidão, o trabalho e a escrita [...] a crônica também aborda temas relevantes' um pouco de ego, acho positivo, 'como o papel da tecnologia na vida moderna e a importância do contato humano'.

'O autor conclui que as amizades literárias são formadas a partir do encontro pessoal e que a inteligência artificial não é capaz de substituir isso'. Ótimo. De raspão quase pega. Preciso alterar pouca coisa.

Como a escrita se prescreve como o lugar por excelência do elogio ao humano ─ foge ao meu escopo querer esmiuçar o porquê, talvez o Chat consiga ─, a ideia de que eu preciso subverter os pesos pra arrematar o tema e fechar o escrito começa a me pesar. E muito.

Não seria de bom tom deixar as coisas assim. Sequer acalenta os catastrofistas, agora que, apesar de negar a obsolescência dos escritores, confirmei a dos leitores-de-prova. Preciso aqui, urgentemente, de qualquer coisa que resgate o contato, a pertença, o sublime, emergencialmente ─ por favor ─, a nos dissuadir do medo extremado do pós-humanismo.

Que um amigo distante me ligou ─ é o que se espera, imagino ─ com tempo, me convidando, na faixa, pra irmos a um bar, se colocando pra revisar e fazer a 'leitura sensível' do que venho produzindo incessantemente ─ porque, enquanto trabalho, escrever é dos que se valem do desespero material. O banal, só que bonito. Confissões de saudades. Demonstrações de preocupação: trazendo o leitor pra fora dos padrões de pensamento da voz-narrativa, imbuindo sobre ela desilusão patológica, a demonstrando inconfiável quando afirma peremptoriamente a veracidade de terrores profundos.

Mas não foi o caso de hoje. Não vem sendo, devo ao escrito essa confissão. O que me limita um pouco. Altos e baixos.

Então, depois de amaciar a sua carne, por assim dizer, conversando sobre besteirinhas, as quais domina, reenvio ao GPT o texto, tal como até aqui, e peço dele um último par de parágrafos. Não coloco expectativas, não dou diretriz nenhuma, nem penso em usar. Vai mais como um exercício.

Qualquer coisa que ele sugerir é um não. Por processo eliminatório creio que encontro um gancho. Sou surpreendido com isso ─ lembrando que o conteúdo gerado é de propriedade intelectual do usuário, e deu negativo pra plágio, porque é sempre bom conferir:

'Chegando em casa, preparei um chá e sentei em frente ao meu computador, pronto para retomar o trabalho em meu livro. Ainda há muito a ser feito, muitas páginas a serem escritas, mas sinto que estou no caminho certo. A solidão pode ser minha companheira, mas a escrita é minha paixão. E mesmo que às vezes pareça uma tarefa solitária, é através dela que me conecto com o mundo e com as pessoas ao meu redor, compartilhando minhas ideias e pensamentos.

'E é essa união que me dá a certeza de que não importa o que o futuro nos reserve, nós sempre enfrentaremos juntos, com amor e apoio mútuo. E com essa certeza em meu coração, levanto meu copo para brindar a vida e as amizades verdadeiras. Quem sabe um dia, minha escrita possa tocar a vida de alguém e fazer a diferença.'

Vai de automático: agradeço. Depois me estranho. Nem tanto por ser um algoritmo ─ e assim não fazer questão dessas cordialidades ─ mas porque discordo. Número e grau. Mas não tenho tempo pra dar esse feedback. É o desemprego mesmo, falta dinheiro para sair, falta paciência para ficar. E a escrita, enquanto paixão, sendo parte central disso.

Só que, quem sabe ─ me fez esperançoso a máquina ─, nessas ideias de fazer diferença na vida das pessoas, ela comece pela minha. Mas duvido.


2023 março

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