tecnodeterminismo do autogerenciamento subordinado
GOMES, Alair de Oliveira. A não-história de um chofer. Rio de Janeiro, RJ: [s.n.], 1975. 49 fotos, gelatina e prata, p&b, 12 x 17,5 cm e 18 x 12 cm. |
O céu e o cérebro, com suas nuvens, se dobram sobre si mesmos de forma a caberem no espaço limitadíssimo do possível. Ao redor, só a solidez contra o inchaço.
Nesse dia, embora as ambulâncias chegassem cedo e o ar ainda sustentasse os rotores que por ele rodavam, o clima era opressivo. No céu: o peso do alto-inverno na secura de há-semanas. No cérebro: a leveza das últimas noites não dormidas.
Pro Davim — não que tivesse se debruçado muito sobre o assunto ou o pensasse com calma —, a diferença entre os carros e as motos seria simultaneamente relevante e simples, silogística, até, sendo: que um carro é sempre um cômodo.
Fez filosofia aí, portanto — sem dúvidas. O automóvel é sempre um lugar fechado, um seio, isso independentemente de onde ele pare. Imóvel, é praticamente um imóvel mesmo; é possível que as palavras sejam assim de férteis.
A moto é só transporte, é o leva-e-trás dos objetos movíveis, intransigentemente interstística. A moto é um entre, e quem trampa com moto existe nesse desconforto de trabalhar nas trincheiras dos espaços privados e a própria rua.
O carro fica. O carro te acolhe. O carro te abraça mesmo na morte.
Quando na idade de tirar carta ele tirou dos dois. Os pais não queriam que ele pegasse em moto, mas ele era Jovem Aprendiz, arcou com a diferença — no desconto-mesmo que ela representa —, sempre foi turrão de-fato, e os velhos aceitaram. Tiveram que aceitar. Não tinha alternativa, não tinha fritação que fizesse ele desistir.
O carro era da família e conquanto ele saísse com o carro deles eles tinham um motivo pra ficar ligando, pra mandar voltar. Davim não era de ser mandado, embora viesse. Sempre que vinha: prometendo pra si mesmo que a felicidade plena era fruto da independência.
Pra resolver esse perrengue, deu de-óbvio no óbvio da proposição. A mãe caiu pra trás quando ele chegou com uma Biz, falando que era dele em parcelas, falando que ia pegar entregas. Pegou. Então trabalhou com isso como pontapé inicial pra garantir a sua ferramente da trabalho — como se faz, por muitos —, fez assim estrear o primeiro quarto dígito na conta bancária; as cicatrizes dos pinos atestam. Coisa de não muito tempo, no entanto.
Nessas, juntou dinheiro pra dar entrada num Fiesta da de-usados dum tio dele. Pegou outros bicos pra ajudar a pagar, postergou sair de casa: tudo que contribuísse. Aí percebeu. Daí a lapalissada que lançava em seus dias de trabalho, enquanto Uber, depois disso: entrar num carro é viver dentro de alguma coisa.
Não é que não vivesse em relativo conforto, sempre viveu, mas foi aí que ele entendeu o que era conforto duma forma tangível. Tanto que passava a mão na porta, sempre, antes, como se precisasse achar a maçaneta.
Saindo de casa ele levava um dois-por-dois dela com ele, pra descansar, pra falar no telefone, pra comer, pra dormir, se for, namorar; pra se sentir seguro, mesmo sabendo ser só sensação a segurança. Se a ilusão é completa, já faz o jogo: é a realidade.
E também tinha o ar: morando no interior de São Paulo, uma sombra e duas brisas não são coisas que se negue a ninguém, nem que se despreze.
Na madrugada ele se perdia um pouco, a coisa pecava no profissional; pegar a madrugada é ter a cidade toda aberta pr'ocê e o pouco do lar — que é o seu carro, também — aberto pro mundo, pra qualquer doideira possível que de posse de um celular com acesso à internet e, por consequência, o aplicativo — e, não obstante, a essas horas o mundo é tenso, vadio. Com isso histórias pra contar. Com isso a carga de tempo de higienizar os bancos, porque essa inevitabilidade é ao par com o aparecimento das estrelas.
Jornadas duplas, tripla-jornada, que-nada: era quase como que nenhuma; convencesse a si mesmo. E a filosofia convencia, empreendia.
Então não veio como surpresa pra si mesmo, que, quando na morte da mãe, repentina, inconversável, ele decidisse vender a casa pra botar a sua metade num carro. Não era nem que vendesse uma casa: a trocava por outra, com troco pra melhor-investir. O pai nada discutiu, ruir impérios no arrendamento de novos tetos é o destino dos sitiados.
Davim alugou, também, um apartamento de repasse de COHAB; coisa pouca, longe de tudo, só pra ter uma base. O de importante era o carro e, fora o carro, vivia dentro dele.
Alto risco.
Não importa quem dirigia o Águia ou quem segurava a AK, nem o que fez quem fugia, se fez, ou se fugia, importa que — e o que fica — é que na volta do terceiro dia morando pra trabalhar no próprio carro, acordado, rodando, Davim achou que era com ele, Davim achou que era alguma coisa, Davim não soube bem o que achar enquanto o corpo dele mesmo ia achando jeitos de gesticular essa falta de compreensão. Se era ou não era arrastão, se é que há ou não esse tipo de coisa que passa na televisão, ele não sabia. Se quem batia na janela vinha em socorro ou contenda…
Ele. Não. Ia. Deixar. Levarem. O. Carro. Ele era o carro. Num segundo, que não, já era.
A não mais que duzentos metros dali, Marli, que amassava latinhas, sequer ouviu o envergar do latão. A não mais que cem metros dali, quem por entre os ruídos do centro e o sussurro do helicóptero e seus ocasionais soluços, afogados em choros de crianças ou quem vinha por ali na regurgitância sincronizada dos postos de trabalho, qualquer-quem mal sabia que quem batia com o carro era o Davim, o seu Peugeot novinho, que, mesmo no em-avanço da herança, ainda se pendurava em algumas parcelas.
Pendulavam partes. Quem não mais que cinquenta metros da cena assentada — não era nada — pôde infelizmente ver, pra saciar a curiosidade, que muita: é de se imaginar.
O que não se imaginaria, no entanto, e não imaginava Marli, juntando seus centavos pro futuro da filha, era que Sândia ─ filha-essa ─ se pendia do capô, desfigurada.
Pra ir pra escola ela ia de busa, sempre foi. Talvez tenha ido de perua pra pré-escola, ou a pé, mas não lembra. Sândia parece que teve pra sempre esperando o próximo da linha, naquela angústia sem prazo entre a última vez que pegou o celular pra olhar as horas e o próximo momento que não fosse imprudente pegar.
Desde que ela pôde se lembrar, já na beirada dos seus vinte em sua última viagem, na bolsinha do macaquinho ela levava: um gloss de uva, um espelhinho de tampa de base, um Halls cereja em seus dois-terços e a carteirinha de ônibus junto com o RG dentro do plástico.
No ensino médio ela já conseguia ouvir o chiado metálico do freio do busão a no mínimo dois pontos de antecedência. Tinha os horários de cabeça, a ordem de chegada dos ônibus, os dias de semana que marcavam os atrasos típicos de motoristas diferentes.
Quando olhou pra cima confirmando o trovão contido dos helicópteros, guardou nas partes o celular. Quando ouviu, tardia, o virar do ônibus na mesma esquina de sempre, de onde ele vinha — e já até gasta por onde as rodas da máquina evitam as barreiras na calçada —, Sândia, como-quem-diz, tô salva, levantou no instintivo de dar bandeirada. Não precisava
Quer-dizer…
O carro ficou mastigado por baixo do aramado do ponto, alocado entre o cimento dos bancos e os tijolos do muro como uma língua entre os dentes. O eixo do ônibus ainda aproveitável, por incrível que pareça, apesar do impacto, dava um beijo na testa da cena como quem a abençoa.
Permaneceu assim — o carro — até que os bombeiros chegassem, até que ligassem pro guincho e pras outras máquinas de liberação da via. Davim já não tava no carro quando o passaram — o carro — pra cima da caçamba, tava na morgue, fazendo perícia. Sândia foi levada ao hospital, direcionada-ao, ainda, mas quando chegaram ela já não tava mais entre eles.
Dos dois, só um teve que sair de dentro daquilo que o gestou na forma atual: só Davim foi parido pra morte. Arroxeado, placentário, sangrando, quase explodindo de vida, entre gritos ─ não dele. Só Davim fez a passagem; o que é injusto.
Todos merecem a chance de que os próprios sonhos os abracem na partida, vero. Porque ter um carro é literalmente o mínimo duma pessoa hoje em dia. Que aquilo que faz o sujeito ser o que é, assim sendo, o embrulhe de presente pro infinito.
É que ninguém morreu mais esse dia, nesse quarteirão. E quando o tempo se permitiu tirar dos bolsos a chuva que guardava, depois de tanto ver: o cérebro, que antes dilatado, alagava, e o céu, enxuto, abria canto-a-canto seu grande esgarço de indiferença.
2023 julho