sha zhu pan (殺豬盤)

 


uma rã mergulha

na água em que a Lua se espelha

antigo lavabo

Mesmo que ela não tivesse dito que me amava ─ e ela disse, várias vezes, de um jeito ou de outro ─ meu amor já era ganho. Eu sou um homem simples. Entenda, eu sou sozinho. Depois do meu divórcio, e depois que minha mãe morreu, por longos períodos, eu não tinha mais ninguém comigo. Ainda não tenho. É uma situação meditabunda. Uso o computador como distração. Nem sei mexer muito, só o básico.

E mesmo que essas coisas de internet não façam sentido, amar fez. É o que eu acredito. Amar me deu certezas.

Conheci a Suzan no Facebook. A única rede social que eu tenho, fora meu blog de poesias. É onde mantenho contato com meus poucos amigos, leio notícias e compartilho pequenos prazeres. Poucas vezes encontro por lá pessoas que ainda não conheço, tenho minha própria 'rede', como imagino que falam. Mantenho os mesmos trajetos a quase dez anos.

Suzan Liu, ela se chama ─ tônicas nos dois Us ─, me apareceu como sugestão, apesar de não termos amigos em comum. Minha curiosidade me venceu. Creio que foi o destino, de fato. Apesar de ser um tanto cético quanto a essas coisas.

Poucas fotos, poucos amigos: assumi modéstia. Ainda mais por ser bonita ─ e jovem, pra mim, nos seus trinta ─, tudo indicava que era alguém com certa seriedade, um perfil com um tom profissional. Nada das besteiras que geralmente compartilhamos em perfis pessoais ou o sem fim de comentários e acontecimentos. Não respondia aos comentários que seus amigos deixavam nas suas publicações ─ muitas sobre o Estado Chinês e a tão recente pandemia ─, agradecia só com emojis os elogios em suas fotos.

Dessas fotos, uma no Cristo. Algumas fotos com máscara. Só uma sendo selfie propriamente dita, , sem esses filtros no rosto, sorrindo. Roupas sóbrias. Um recato encantador. Se dizia sino-brasileira de primeira geração, ou turista assídua ─ por vezes os dois, não soube interpretar ─, uma diferença à qual não fiz caso. Amava o Brasil, basta. Com a pandemia, entretanto, ficou retida indeterminadamente em sua última visita à família. Me preocupou gravemente ver as notícias de lá.

Me envergonha agora perceber que eu tinha na ascendência dela qualquer encanto, mas eu tinha. Não quero me fornecer desculpas e justificações, mas em certo sentido é inevitável. Desde criança ─ cresci no interior paulista ─ a presença asiática me intrigou mais do que seria educado notar. Mas, não obstante, eu notava ─ coisas da época.

Florescia ─ e aqui o bom tom de não usar metáforas ─ como uma admiração, entendo por um tanto vislumbrada, 'problemática' até, como dizem os jovens. Tinha nessa ideia antiquada de 'oriente' os desenhos de uma visão de mundo distinta da minha, com a qual já jovem vinha me desiludindo. Sim, foi um escape.

Meus avós eram alemães. Nos meus cinquenta e tantos anos de idade, vivi muitos festivais. Os europeus sempre foram um tanto, tenho que dizer, desconfortáveis. Não raramente encontrei na Oktoberfest pessoas com as quais nunca mais se encontrar. Muito diferente, no entanto, eram os tanabatas. Até mesmo o ar era acolhido, provavelmente se sentindo assim, nas decorações de papel.

Cabe entender as nuances de cada região e que a influência japonesa é muito mais evidente, ao menos no sudeste. Há, sim, o inevitável da confusão duma coisa pela outra, mesmo que díspares. Essa é parte da minha vergonha. Compartilhada entre muitos da minha geração, imagino.

Da China, antes de Suzan, só conheci o Yan, meu amigo expat ─ por problemas com a família, apesar de alegar, também, problemas com o governo ─, anticomunista ferrenho. Passamos muitas tardes concordando em termos de política.

Uma amizade leve porém desencontrada. Nunca fui acolhedor às proximidades, não tenho tato com a manutenção de 'melhores amigos'. Ele, também, sempre muito ocupado trabalhando, apesar de receber uma pensão dos parentes. Muitas vezes me tentou ensinar algum tipo de filosofia de vida por trás das suas estratégias de Go, sem frutos. Outras vezes, também frustradas, o tentei interessar pelos poemas que componho nos meus longos abandonos:

as flores de ameixa

desabrocham enrugadas ─

vento da manhã

Fora certos preconceitos contra sua terra natal: um bom rapaz. Fora certos vislumbres: brasileiro de criação. Por esses dois motivos não o apresentei à Suzan. Negativas ou positivas, as impressões que fariam um do outro seriam intensas demais pra se manterem secundárias à minha relação com ambos. Receio, ciúmes, qualquer um desses nomes é válido pro que eu senti.

Conversamos, eu e Suzan, por um tempo sem que fôssemos amigos digitais. Isso foi, creio eu, em 2021. Fui eu quem se lançou ao encontro, buscando, tentando não assustar, caçando andorinhas.

Ela, receosa, foi cedendo. Mudava de humor com certa frugalidade, é verdade, mas eram mudanças sutis. Sempre educada, interessada, nunca se mostrando desinteressada ou absorta. Por fim me adicionou aos amigos, senti isso no corpo como coisa real. Respondia aos meus 'Bom Dia', 'Boa Tarde', sempre no inverso dos meus horários.

Me contou suas dificuldades financeiras, suas agruras em se manter num país ao qual se sentia hostil ou hostilizada. Contei as minhas agruras, também, não só relacionadas a isso. Sem me contar, percebi que tinha dificuldades com a língua. Já me acusaram ─ não poucas vezes ─ de um zelo negativo em ensinar. Um certo 'pragmatismo pedagógico incontrolável', a minha ex dizia. Então de começo sequer corrigia. Nessa suavidade fingida, consegui apreciar o seu sotaque com doçura.

Notando minha ansiedade ela quem resolveu pedir orientações. Eu perguntava se podia ─ lógico, desenvolvi com custo essa percepção de barreiras e limites ─ e ajudava ela a falar na norma. Ela me deixava indulgir, mais que querer aprender português ela via nisso uma maneira de me agradar, eu acho. Nos envaidecíamos a ambos nessas longas tardes.

Mostrei a ela muito da minha produção diária. Pedia pra que eu recitasse, como se isso a fosse ajudar com o português. A essa altura nos ligávamos. Raras vezes nos chamamos de vídeo, coisa à qual não sou afeito. Queria me saber real, foi o que entendi.

Me provei real, ela se provou até mais que isso, numa beleza cândida e risonha. Eu era um velho apaixonado. O retângulo que me alimentava em imagem de volta a mim me denunciava um iludido, sórdido, calhorda. Sofri muito, por dias, depois de cada conversa que tínhamos.

Quando expliquei isso a ela ─ porque chega um momento na vida de um poeta em que toda a sensibilidade emulada, melhor, fingida, deve ser quem sabe efetivada num rompante de paixão ─ ela riu de mim. Riu bonito, como se me acolhendo no macio desse humor. Alegou besteira. Sugeriu que eu me acostumasse a existir enquanto rosto e corpo, insinuou, pra quando ela viesse. Eu era além da felicidade com esse sonho.

Pouco tempo depois confirmou a proposta: viria. O governo, esse grande crápula, reabriu a saída das pessoas, ou iria em breve. Ela escaparia das garras disso tudo como uma princesa dum reino distante que, independente, se faz livre sozinha. Só precisava da minha coadjuvação. Dessa vez chorei:

as cigarras cantam ─

corre algoz pelo arrozal 

um velho silêncio

Na excitação de que ela viesse, avancei sinais. Verdade é: disse coisas terríveis. A complacência dela foi um motivo a mais pra que Yan desconfiasse de um possível golpe. Em algum momento, sequer me lembro quando, tive que contar. Precisava de orientações, talvez fosse de fato algo cultural que ele, à contravontade, pudesse me explicar.

Com receio de dizer muito sobre as minhas ações, dizendo mais ainda sobre quem eu era, tentou explicar que pessoa nenhuma aceitaria aquele tipo de tratamento. Dissuadiu minhas ideias sobre diferenças de criação. Se não me acusou de coisas piores, imagino, foi porque não se importava. Alegou que Suzan, na verdade, era uma equipe, um caso clássico de fraude na qual os chineses eram especialmente envolvidos, se recusando a entender que eu a tinha visto pela webcam.

Não encarei suas reprimendas com a sobriedade que disponho agora. Nossa amizade, infelizmente, veio ao fim. Suzan ficou devastada quando contei ─ a essa altura já confidenciava tudo com minha amiga ─, mas, pra a minha surpresa, o compreendeu.

Muitos que fogem por problemas com o regime guardam esse tipo complicado de rancor, ela disse, que se expande aos compatriotas. Não se julga, de fora, as impressões que uma pessoa possa ter sobre o próprio povo. Isso é algo com o qual qualquer brasileiro concordaria.

Chegando no Brasil ─ ela disse ─ faria questão de reatar minha amizade com Yan, reatando, também, a relação de Yan com a própria cultura. Prometeu isso entre uma série de muitos gestos de gratidão à bondade que eu estendia a ela. Me senti grato em retorno.

Bordei mais mil poemas, senti o passar das estações nos kigos que minha pena conduzia da natureza ao papel. Escrevi também muitos senryu quando a natureza pareceu zombar da minha espera ababelada. Versos vis, decaídos.

Contudo, imerso nessa paranoia, piorei meu tratamento com Suzan. Comprei dela, com o dinheiro que lhe mandava, a liberdade de atos esdrúxulos, nada que disponho coragem de descrever agora. Mesquinharias, afetos mínimos. Nada que ferisse a integridade dela ou a honra enquanto mulher, não me entendam mal. Não sou esse tipo de homem. Mas me tornei irreconhecível a mim mesmo.

Cobrava ligações, pedi inúmeras vezes pra que me atendesse imediatamente e, quando atendeu, cobrei, repetidas vezes, todas as suas demoras. Passei a ser quem pedia por chamadas de vídeo, querendo ver sua casa, seus parentes, duvidando da inexistência de um parceiro às escondidas. Duvidando de tudo, mesmo que eu esquecesse os detalhes.

De retaliação, mais que merecida, não quis conversar mais comigo. Se dizia ocupada. Dizia que os familiares a questionaram sobre a honra de se mostrar assim. Amigos não cobram nada, ou ao menos assim deveria ser ─ ela protelava.

Mandei uma quantia significativa na sua direção, dizendo com isso 'pras ajudas', sussurrando por baixo 'pra nossa amizade', tentando aumentar com ela uma espécie de crédito, pedindo monetariamente desculpas. Funcionou por um tempo. Cheguei a ver seu rosto mais de uma vez. Mas esfriávamos, era visível. O dinheiro, que fiz possível na venda de um terreno que eu tinha, também acabava, me desesperando um pouco.

Numa de nossas últimas conversas, eu, já temendo pelo fim, dei a ouvir mais o que ela dizia. Me envergonha ─ quanto mais de vergonha eu posso carregar? ─ que nisso havia algo de estratégico. O amante retornado, as serenadas sempiternas e ternuras exageradas de reconciliação. Sim, eu fui calhorda. Eu fui um conquistador barato.

Nessa conversa ela me contou mais sobre a sua infância, sobre questões culturais que ignorei quase completamente. Eu sempre querendo saber o que ela achava do Japão, o que ela achava do próprio governo, o que ela achava do nosso, querendo triangular nela um ponto diferente de observação dos meus próprios interesses. Percebi aí que não sabia quase nada da vida íntima dela, coisas quais se discutem os casais.

Na região em que ela foi criada ─ isso ela me explicando ─, um dos festivais de inverno típicos envolvem a engorda de porcos pra matança futura. Não tão diferente do interior de Minas, ou, em menor grau, qualquer outro estado continental do Brasil. Nos tocamos um pouco nessas semelhanças. Ela me mandou links de vídeos demonstrando esse costume, em mandarim, mas as imagens representavam mesmo isso. Cores, flores, sons, uma beleza diferente, uma beleza diferente, até, daquilo que eu vim admirando até então.

Sua comida preferida de todas ─ de todas, todas mesmo ─, era típica desse festival, um prato chamado de Sha Zu Pan ─ pronúncia que me fez aprender, me fazendo repetir várias vezes por áudio e ligação ─, uma espécie de lombo suíno no equivalente deles ao molho madeira, feito na lenha. Me contou que sabia preparar. Que sabia matar porcos, inclusive, o que foi fascinante saber, com o quão delicada ela parecia. Disse que mataria um porco em breve, até como uma forma de despedida de seu país.

Uma semana antes de marcar o voo, me pediu um haiku sobre a iguaria. Enfim os aeroportos reabririam e ela poderia voltar ao Brasil. Finalmente vir até mim, seu amigo correspondente, que de longínquo e postergado amor se fazia um bruto abestado. Sequer escrevia mais. Tive nessa sua preocupação mais um sinal da sua fidelidade por mim, que quisesse me manter produzindo.

Descreveu o sabor da carne como podia, uma linguagem pouco poética, porém vívida. Era inverno lá, verão aqui. Assim escrevi:

Sha Zhu Pan quentinho

doce amor como o mormaço

boca ancha de Sol

Por demorar a chegar, mandei mensagens pouco polidas. Por demorar a me responder, deitei de lado as lisonjas. Na semana que se passou cobrei de volta o preço das passagens. Finalmente as suspeitas de Yan me tomaram e eu a acusei. Usei uma linguagem completamente inapropriada, eu assumo. Generalizei as coisas. Apesar de não as querer revelar aqui, disse coisas muito erradas.

Hoje acredito que, talvez, não tivesse eu perdido o controle, não tivesse sido com ela aquilo que no fundo de mim eu sei que sou, e tento mudar, viveríamos juntos. Ou algo que não a continuação da minha tristeza colapsada e solipsista.

Yan se mudou, nossa amizade, senão irreparável, já é passada e de difícil remendo. Já sou velho demais ─ ou finalmente me percebi ─ pra me dar em festivais. Não encontro companhia nos meus próprios versos.

A delicadeza com que ela descreveu os sabores ficou pra sempre em mim. Tomando de emprestado as minhas papilas gustativas quando, em homenagem a ela, e em saudades, sem dúvida, peço Porco Xadrez. Me sinto lírico nesses momentos. É assim que a pretendo guardar na memória.

Mas não posso evitar de lembrar também de Suzan abrindo meu computador ou usando a rede social, que já não tem mais cor. Ou, quando não, quando eu abro a gaveta em busca de canetas e vejo o pendrive que ela chamava de 'carteira digital', que era a única maneira que eu tinha de mandar dinheiro pra ela sem o governo roubar de nós.


2023 março

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